sonho americano, parte 2
1989, 31 de janeiro. Meu aniversário de 41 anos. Cheguei em casa de um jantar com a família e havia um recado na secretária eletrônica: "Happy birthday, Joyce! Aqui é Richard Seidel, vice-presidente da Polygram USA. Gostaria de falar com você sobre vir a Nova York e gravar um disco conosco."
Presente
de aniversário era pouco. Era o sonho americano abrindo as portas para mim mais
uma vez, eu que já tivera uma frustrante experiência em 1977, com o famoso
disco com Claus Ogerman, "Natureza", jamais lançado. Eu não
conhecia Seidel pessoalmente, mas depois fiquei sabendo que ele conhecia alguns
discos meus anteriores e também que Tom Jobim, que estava terminando de gravar
seu 'Passarim' para a Verve (o braço jazzístico da Polygram norte-americana)
havia indicado meu nome a eles. Eu gravara um disco com seu repertório, em
1987, do qual o maestro havia gostado muitíssimo. E assim foi que surgiu este
convite.
Organizei
a vida e fui a NY, onde conversei com Seidel e outras pessoas da gravadora.
Seria uma volta ao esquema das majors, que no Brasil eu não frequentava
havia anos. Por isso procurei um advogado americano, caríssimo, mas de
confiança, indicado pelo Bituca. Ele era advogado de artistas pop como Madonna,
o que já dava uma ideia do quanto seus serviços custavam por hora - mas paguei
com prazer, queria me certificar de que dessa vez tudo daria certo.
Quase
deu. Assinamos o contrato, e me foi pedido que eu voltasse para casa e fizesse
uma fita demo no Brasil, com músicos da minha escolha, que possivelmente seria
usada como base do disco. O diabo mora nos detalhes: possivelmente. Gravamos
com o grupo que tocava comigo na época. Chegando de volta a NY, surpresa: não era
nada daquilo que a Verve queria.
Gravadoras
às vezes são como certos maridos: apaixonam-se por uma mulher, por tudo o que
ela é, e depois querem que ela mude sua essência e a festa acabe. Pois mesmo
depois de saber o que eu era, ouvir meu som, ver o jeito com que eu queria que
minha música fosse feita, Mr. Seidel declarou sem meias palavras que gostaria
que eu regravasse tudo com músicos americanos. Fiquei assustada e preocupada em
como o suingue brasileiro da minha música seria preservado. Especialmente
porque havia uma cumplicidade de linguagem entre meu violão e a bateria do
Tutty que leváramos anos para construir. E também porque o próprio Tom jamais
abria mão de usar bateristas brasileiros: Doum Romão, João Palma, Paulo Braga.
Nem mesmo gravando com Sinatra houve esta questão. E se houve, ele resolveu
favoravelmente.
Mas
eu não tinha o poder de fogo do soberano maestro. E tive de engolir (afinal, já
havia um contrato assinado) o que a gravadora me impunha: músicos americanos,
para que o som ficasse com a cara do estilo fusion que era moda naquela
época - e que eu respeitosamente detestava. Os músicos eram de fato ótimos, a
fina flor do jazz novaiorquino daquele momento, e com alguns deles construí uma
sólida relação de amizade, que dura até hoje. Mas a base ficou dura demais, sem
aquele não-sei-quê-que-faz-a-confusão, que só uma base brasileira daria.
Acabou
que gravei várias faixas apenas de voz e violão, ou de violão e percussão, aí
sim, com a colaboração do brasileiro Café, radicado em NY. E ainda são minhas
preferidas deste disco. Dentre elas, improvisada no estúdio, uma leitura minha
para 'Help', dos Beatles: "help me get my feet back on the ground...
won't you please, please help me..." Era o desespero que eu sentia
naquele momento.
No
ano seguinte eu gravaria o segundo disco para a Verve, aí já com uma base
mezzo-brasileira. Mas ainda não era minha música do jeito que eu queria e sabia
fazer, havia ainda muita interferência por parte dos produtores americanos. Do meu
jeito mesmo, eu só conseguiria gravar bem mais à frente, para a Verve alemã, para gravadoras
japonesas ou para a inglesa Far Out. Mas aí... é outra história que fica pra
depois.
22 Comments:
Oi Joyce. A musica brasileira tornou-se o passo a frente na historia da musica. Voce acha que vao permitir? Nao pode! Nao pode!
Ai, Jesus, só muda o "ramo", mas no fim, mesmo a música, arquitetura, teatro, cinema, livros...quando isso vai para o mercado existe só uma palavra "negócios".
A arte fica em segundo plano, mas outra se impõe: a ARTE de dizer "Não" em prol de suas convicções e SOBREVIVER até um outro toque de telefone com convites para novas esperanças... mas é dureza!
Pois é...
Se eu ganhar na loteria banco um disco seu igual ao que Ogermam enfiou no... bolso? Ai agente vende pro japones mais baratinho. Que tal?
Ainda assim, todos esses "senãos", não me tiraram a vontade de ouvir este disco. Obrigado pela partilha!
Olá, sou um grande fa de joao gilberto e do samba em geral, e reparei em uma foto sua que esta com um violao parecido com o que ele ja usou em algumas ocasioes pelo desenho da mao do instrumento e nunca soube qual era o modelo:
http://1.bp.blogspot.com/-yTk6YG9f1IM/TfNtJhAtcJI/AAAAAAAABQE/FtrGIZyGitc/s1600/1998%2BRio%2B-%2Bshow%2BPremio%2BSharp%2B-%2BTeatro%2BMunicipal.jpg
Se você puder dizer qual é o fabricante ficaria muito agradecido. Obrigado
A pegada desse artigo lembrou-me do (ótimo) programa "O som do vinil" do Canal Brasil...
O caminho das pedras tem suas armadilhas e tropicões...
Abração, Rogerio
Esse violão é um Asturias, feito por uma pequena fábrica do Japão, e acho difícil que João tenha usado, pois ele é eletro acústico e o João só usa 100% acústico.
pois é joyce
isto, quando não fazem pior, consideram o disco não comercial e resolvem engavetar as fitas.
eu particularmente nunca entendi esta de história, pois afinal se toda a produção foi paga, por que não lançar o disco?
a antiga poligram tem um histórico quanto a isto. se eu pudesse entrar nos arquivos ia roubar dois discos que estão lá mofando, um da leila pinheiro e outro da tetê espíndola, na odeon eu ia atras de um lp da sylvinha telles com o luiz bonfa que só saíram quatro faixas em um compacto. como o natureza estão esperando vir a luz do dia.
de resto sabendo desta fita demo fica a vontade de escutar e poder ver a sua concepção original.
fica aqui dois pedidos:
seria possível lançar esta demo em cd?
outro pedido seria para você gravar essencial em português, pois sua única gravação é neste disco na língua de gringo e eu adoraria escutar sua interpretação da letra original.
beijos
Oi Tulio, a demo original se perdeu... E Essencial em português eu não cheguei a gravar, mas tem uma gravação da Fafá de Belém, arranjo do César Camargo Mariano... Aliás é o título do disco dela.
Certa vez em um bar um Americano gritou ao ouvir wave: Stan Gets! Diana Kraal certamente ainda nao sabe tocar Misterios. Rhuh.
Pois é, mas se você reparar na capa do album "ela é carioca", e no comercial dele para a vale, a mao do instrumento é do mesmo desenho(e é um instrumento totalmente acustico inclusive). Fiquei muito curioso, pois ele usava mais modelos da Di Giorgio.
Que frustração, heim, Joyce. Sei bem o que é sofrer interferência num trabalho autoral. Na minha área também existe isso, e em muitas outras também.
Pelo jeito, a burrice e a cegueira são características comuns entre os executivos de gravadoras. Li os livros do André Midani e do Mazolla, qua parecem ser exceções (não sei se você chegou a trabalhar com um dos dois e tem alguma história sobre eles pra contar).
Faz tempo que não ouço Music Inside, deu vontade de ouvir de novo agora.
joyce,
lendo teu relato, me vem aquele bordão bíblico...pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem...
todo meu respeito áqueles que presam pelo cuidado estético e acreditam tanto nisso que se opõem contra ás regras da indústria, mídia e os cambaus...mas recuso toda patrulha contra projetos de artistas que por ingenuidade ou mesmo necessidade fazem suas concessões ou perdem o controle dos mesmos...
ás vezes peço perdão também, por mim mesmo, ou por transgredir tanto ou conceder demais...manter esse equilíbrio é que faz a grande diferença dentro dessa profissão...não é isso???...
de alguma maneira, a internet tem resgatado bastante arquivos...muita coisa deve ter vazado das mãos dos donos da voz...alguma fita pirata, aqui e ali, sempre acaba escapando...fica no armário mofando...e alguém descobre e bota pra deleite nosso aqui...rs
pôxa, prolixo pacas...sorry
abrsonoros e segue o baile
Eles podem esconder o Natureza a vontade. Nos vamos curtir o Tudo. A Joyce e' Brasileira e nao esta escondida. Vai te cata Ogerman!
No Elis e Tom, nao deu pra ele. Entrou de figurante. Vai ver no Natureza ele sumiu na poeira. Cof, cof guarda, guarda!
Muito interessante. Isso mostra que não é só no Brasil que grandes gravadoras impõem artistas mesmo já consagrados a coisas que eles querem. Que ótimo saber que você continua na ativa produzindo cada vez mais sem precisar de estar em grandes gravadoras. Também gostaria de ouvir o original, pena que se perdeu.
Baptistão, não há exceções nesse ramo. Pelo menos, não essas exceções. É o que posso te dizer.
Humm, imagino, Joyce. Naturalmente que, escrevendo na primeira pessoa, eles só tivessem casos edificantes pra contar.
Fui procurar o Music Inside e lembrei que só tenho o vinil. Lembrei também que aguardo ansiosamente pela sua caixa de CDs, principalmente pelo Tardes Cariocas e o Saudades do Futuro, que também só tenho em vinil. Mas essa você já disse que está adiada indefinidamente. Ah, as gravadoras...
Oi Joyce. Tenho uma releitura espetacular do hit "Meu ursinho blau blau". Poderia me passar o e-mail do Ogerman? Grato.
Mandei fazer um boneco "Industria Fonografica", que sera devidamente homenageado no Sabado de Aleluia. Participem.
Joyce, espero q se lembre desse acontecimento. Nunca é tarde para lhe dizer, muito obrigado!!
http://cantadordehistorias.blogspot.com.br/2012/12/a-paz-de-cada-nota_3.html
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