domingo, dezembro 08, 2013

Na África do Sul

A morte de um verdadeiro estadista como Nelson Mandela mexe com o imaginário das pessoas. A mim, particularmente, traz lembranças de uma das viagens mais incríveis que já fiz na vida, e olha que foram muitas: em 2000, estivemos tocando em Johannesburgo, na África do Sul.

(Na foto acima estou lá, com a grande diva sul-africana, a cantora Sibongile Khumalo, e o músico e produtor, igualmente respeitado e amado em seu país, Cypho 'Hotstixs' Mabuse, no Kippie's Jazz Club. Os dois tinham no repertório a nossa 'Mistérios', na versão em inglês que fiz pra gravar nos Estados Unidos)

E como chegamos à África?
Pois muito bem: no ano 2000, fui convidada para participar do Arts Alive Festival, que reunia artistas de todo o continente africano, como representante do Brasil, país que naquele ano os organizadores queriam homenagear, como grande exemplo da diáspora africana pelo mundo. A (in)correção política de tal escolha não chegou a ser um problema. Até hoje não sei definir a que etnia/raça pertenço. E me alegrou saber que a escolha se deu pelo som de minha música, e não por qualquer outra razão. Fui com meu grupo para Johannesburgo, e em outras cidades do país se apresentaram Beth Carvalho com seus músicos, representando o samba, e o trio de Hamilton de Holanda, pelo choro.

Já na chegada, as duas simpáticas mocinhas indianas da produção que nos receberam tiveram que responder às nossas indiscretas perguntas: como seríamos classificados racialmente, caso ainda houvesse o apartheid no país? Elas nos examinaram detidamente e foram dando as classificações prováveis. Teco Cardoso e Mauricio Maestro: brancos; nossa então produtora Beth Bessa, mulata, foi classificada como "colored". Eu e o Tutty: inclassificáveis. A nossa morenice de famílias mistas, carioca no meu caso, e baiana no caso dele, confundira nossas duas anfitriãs. Confesso que nos sentimos de fato representando o Brasil, com nossa 'exótica' mistura de tonalidades de pele. É bom lembrar que no tempo do apartheid os casamentos mistos no país davam cadeia. Portanto seria preciso esperar mais uma geração ou duas, para que cores como as nossas, tão naturais no Brasil, começassem a aparecer por lá.

Fiquei encantada com tudo: a arte, a cultura, a música, as pessoas, embora fossemos firmemente desaconselhados a sair à rua sozinhos. O adido cultural brasileiro, que também nos recebeu com enorme gentileza, em dado momento nos contou que os problemas de segurança por lá eram terríveis, e não necessariamente por causa dos cidadãos sul-africanos, mas pelo excesso de imigrantes dos países vizinhos, quase todos envolvidos em trágicas guerras civis, como Serra Leoa. Ele nos contou que 90% da população andava armada no dia-a-dia, mesmo em supermercados e shoppings, e que não havia uma semana em que o consulado não recebesse pedidos de ajuda de brasileiros assaltados ou brasileiras vítimas de estupros. Ficamos bastante impressionados, mas Mauricio Maestro quis tirar a dúvida e saiu sozinho a pé pelo centro da cidade, certa tarde. Voltou incólume. Talvez o adido tivesse exagerado um pouco. Ou não? Tínhamos um motorista conosco durante todo o tempo (que depois descobrimos que na verdade trabalhava como modelo fotográfico e estava ali fazendo um bico), e fomos aconselhados a só sair acompanhados por ele. A certa altura notamos que ele de fato levava uma arma na cintura, discretamente.

Tutty foi convidado por um músico local a tocar bateria em duas faixas de seu novo CD. Antes da gravação começar, este músico (cujo nome, infelizmente, esquecemos) o convidou a passar em sua casa, tomar um café e conhecer a família, esposa e filhas. Era uma residência confortável, num simpático bairro de classe média. Todas as casas em volta, sem exceção, tinham avisos de que estavam protegidas por alguma firma de segurança. E a casa em questão era totalmente gradeada - por fora e por dentro, entre um cômodo e outro. Seria isso normal? tudo indicava que sim, e que as pessoas estavam acostumadas a viver dessa forma. O fim dos conflitos raciais era ainda muito recente.

Imagino que as coisas tenham mudado a partir desse tempo, e que já se viva com mais harmonia e menos medo naquele país de que tanto gostamos - e olha que de Johannesburgo não saímos, a não ser numa rápida excursão ao Pillasnsberg Park, onde pudemos ver os big five em seu habitat natural, de grande beleza, e onde cometemos a imprudência de sair do carro para fotografar um bando de cervos que passava - bem na hora do almoço dos leões. Felizmente, parece que não fomos vistos. Mas os guardas do parque viram, e nos chamaram a atenção energicamente. Levamos uma bronca e tanto.

O melhor de tudo foi o workshop que fizemos em Soweto, o famoso bairro barra-pesada de Johannesburgo, de onde brotaram os grandes protestos que culminaram com o fim do regime. Nossos amigos Sibongile e Mabuse eram (são) filhos do local. E ele, mesmo tendo se tornado rico e famoso, fazia ainda questão de não sair do seu bairro de origem, para, segundo ele, dar o exemplo e servir de referência para a garotada local. Vale dizer que sua casa era mesmo uma referência de bom-gosto, com peças de arte belíssimas, vindas de todo o continente africano. O conservatório de música, por outro lado, carecia um pouco de tudo. Mas não de criatividade. A certa altura, quando estávamos tocando no centro da pequena arena, os alunos começaram a descer das arquibancadas, cantando, dançando e tocando suas marimbas para interagir conosco. Foi um momento emocionante, impossível de esquecer.

Depois a garotada nos crivou de perguntas sobre a música brasileira, e falou-se muito em Antonio Carlos Jobim. Segundo Mabuse, o homem que mostrou a identidade brasileira ao mundo, e que certamente seria amado e reverenciado em seu próprio país… Essa parte, preferi não esclarecer muito, para não decepcionar nossos amigos. Nem quando fui fazer o programa de TV 'Good Morning Africa', às seis da manhã do dia seguinte, e me perguntaram a mesma coisa. O Brasil pode não conhecer o Brasil, mas o mundo conhece a melhor música brasileira. E isso me consola.

2 Comments:

At 8:58 AM, Blogger Lizzie Bravo said...

adorei o texto, muito interessante!

 
At 1:48 AM, Blogger pituco said...

joyce,

mais aventura do que uma expedição pelas savanas…

abrsonoros

 

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