outra entrevista
Esta entrevista abaixo, feita por Ana Maria Bahiana para O Globo, em 1983, fala do lançamento do meu primeiro disco independente, 'Tardes Cariocas'. E vocês vão ver a interconexão das duas entrevistas através do tempo... Num próximo post vou contar detalhes da minha, enfim, transformação em artista independente mesmo, e um tempo de infinitos perrengues que precisei passar por conta de minhas escolhas.
A casa no Recreio dos
Bandeirantes, construída “aos pouquinhos”, à medida que entrava a receita dos
direitos autorais é um dos maiores orgulhos de Joyce:
- Fico toda boba quando
os amigos me dizem que parece casa de fazenda. Essa era mesmo a idéia. Tem
aqueles móveis grandões, de tora de madeira, tem muito quintal. Não quero pôr
piscina, nada dessas frescuras. Quero é uma horta, muita árvore frutífera.
Estou lá há oito meses e acho uma delícia. É uma casa do tamanho da gente,
perfeita para mim, Tuti (o marido, baterista Tuti Moreno) e as meninas (as
quatro filhas, uma do casal, uma de um casamento anterior de Tuti, duas de um
casamento anterior de Joyce). Se a empregada falta, ninguém se aperta.
O outro
orgulho, erigido também com direitos autorais e igualmente aos poucos, é o
elepê “Tardes cariocas”, o primeiro trabalho independente desta compositora com
quase 15 anos de carreira e escassa discografia. Nele há um repertorio
levantado durante um ano e meio de produção, e muitos meses de estúdio, na
amorosa troca de passes com os músicos: Fernando Leporace, baixo, Tuti,
bateria, Rodrigo Campello, violas e guitarras, Mauro Senise, flautas e saxes e
mais um time de convidados especiais no qual brilham as estrelas de Ney
Matogrosso, cantando em “Nacional Kid”, e Egberto Gismoti, teclados em “Ela” e
“Nuvem”, sanfona em “Baracumbara”. O resultado é o fruto natural desse clima de
cuidados – um disco saboroso e íntimo, com delicadezas de arranjo raras de se
encontrar em produções “oficiais”, com a conhecida marca de excelente melodista
de Joyce, com um humor carioca em boa parte das letras – “Diga aí, companheiro”
e “Nacional Kid”, por exemplo, dois alegres comentários sobre as mil faces do
nosso machismo moreno – e uma serena reflexão sobre o fluxo da vida e da arte
em outra boa parte.
Essa calma, diz Joyce, é o que mais lhe dá prazer numa
produção independente.
- O compromisso de ter de produzir um disco a cada ano é
o pior, a meu ver, de um contrato com gravadora. Quando se lança um disco a
mobilização é tamanha que não se consegue fazer mais nada. Quando termina tudo,
está na hora de fazer outro disco. Para mim, o normal é fazer um disco como eu
fiz este – sem pressão de espécie alguma.
Para lançar “Tardes Cariocas” Joyce
vai fazer uma verdadeira festa vespertina no Circo Voador amanhã a partir das
18h30m: primeiro tocam ela e seus músicos, “tudo sequinho, direto” com ênfase
no repertório novo: depois “é a festa da canja, sobe quem quiser e o show não
tem hora pra acabar”. Já está confirmada a presença de João Donato e Wanda Sá,
David Tygel, do Boca Livre, os poetas da nuvem cigana (“vai ser um encontro pra
eles, há tempos não fazem nada juntos”), Luli & Lucina, Manoel da
Conceição, Claudia Versiani.
O caráter festeiro e carioca do evento está em
sintonia com o próprio espírito do disco na capa, flor no cabelo, sorriso,
Joyce deixa ver o morro do corcovado ao fundo: dentro, as músicas estão
divididas não em “lado A” e “lado b” mas em “lado de fora” (“o litoral, a beira
da praia, esse ilumina a versão carioca”) e o “lado de dentro” (“o Brasil, o
interior, o interior das pessoas, também”). E, sem muitas trombetas, em um
manifesto de amor so Rio:
- Minha música sempre teve essa característica carioca bem acentuada. Sou do Rio e deixo que o Rio influencie o que eu faço. Achei que estava na hora de mostrar que o Rio tinha sua música, porque eu já estava cansada de um papo de que o Rio não tinha características próprias. Como se só existisse o samba, de um lado e o rock, do outro. Rock pode ter características de Nova York e pode ser tocado no Rio, mas não tem nada a ver com a cidade. Quis que meu disco mostrasse um pouco dessa música do Rio de Janeiro que eu sei que existe.
“Se o Roberto, gravar sai a quina”
- Minha música sempre teve essa característica carioca bem acentuada. Sou do Rio e deixo que o Rio influencie o que eu faço. Achei que estava na hora de mostrar que o Rio tinha sua música, porque eu já estava cansada de um papo de que o Rio não tinha características próprias. Como se só existisse o samba, de um lado e o rock, do outro. Rock pode ter características de Nova York e pode ser tocado no Rio, mas não tem nada a ver com a cidade. Quis que meu disco mostrasse um pouco dessa música do Rio de Janeiro que eu sei que existe.
“Se o Roberto, gravar sai a quina”
O fato de “Tardes Cariocas” ser um disco independente,
custeado pela própria compositora – “gastei o que é muito para mim e pouco para
uma gravadora. Não digo quanto porque isso é a base de uma série de negociações
que a gente está tendo com algumas gravadoras para distribuir o disco” –
através de sua firma produtora a Feminina, não chega a ser propriamente uma
bandeira para Joyce. A saída da gravadora Odeon – onde fizeram seus dois
últimos discos, inclusive o sucesso “Clareana” – foi um episódio “muito chato”:
- Como um casal em que um descobre que o outro trai, e
ai não tem jeito de consertar a relação. Pegaram um playback meu e puseram
outra pessoa cantando em cima, num disco de montagem. Sem me consultar. Nada.
Ainda ficou difícil manter um bom clima de trabalho. Imediatamente após, vieram
outras propostas de outras empresas, mas nada que me desse as condições que eu
queria. Então pensei: “Por que não partir para o independente?”
Joyce gastou o que recebia de direitos autorais – só
pra citar casos recentes, músicas suas foram gravadas por Gal Costa, Simone,
Maria Bethania e Ney Matogrosso – em estúdio e na prensagem de duas mil
unidades, boa parte das quais já está prometida à distribuidora francesa Dam
que quer colocá- la em diversos países da Europa. Os restantes ela pretende
vender em shows, enquanto estuda as propostas de distribuição encaminhadas por
várias gravadoras. Este, ela diz é o caminho mais sensato para a produção
independente:
- No exterior todo mundo faz isso. Dá até status o
artista ter seu próprio selo. É um excelente negocio para as gravadoras, que
não gastam nada e ganham tudo em cima. Pelo nível das propostas que recebi,
acho que o pessoal aqui já está se tocando disso. O que eu gostaria mesmo seria
fazer da Feminina uma produtora de verdade, gravando outras pessoas e usando a
distribuição das gravadoras. Acho que seria um bom negocio para todo mundo.
Não afasta, contudo, a possibilidade de assinar um
contrato com alguma gravadora, no futuro, desde que lhe dêem as condições que
precisa. E acha que está na hora de se reavaliar a produção independente:
- Estou vendo tudo cair num maniqueísmo muito bobo.
Como se o mal fossem as gravadoras e o bem os independentes. Não pode ser
assim. Eu até nem queria que saísse no meu disco aquela celebra frase, “este é
mais um disco independente”. Deveria ser “este é mais um disco” e só. Porque
ser independente não garante a ninguém que o disco vai ser bom. A pessoa que
ouça e que julgue.
Joyce sente-se a vontade para comentar as formas de
produção de discos:
- Há dez anos eu rompi com os esquemas de gravadores
porque não concordava com o que queriam fazer comigo, e como resultado fiquei
um tempão sem gravar nada no Brasil. Eu queria ser independente desde esse tempo e
sempre procurei meus próprios caminhos para trabalhar. Sempre acreditei que não
adianta ficar parado reclamando.
Independente, Joyce tem excelentes relações com nossa aristocracia musical – seu telefone não para de tocar com pedidos de música vindos de estrelas de todas as constelações de nosso cancioneiro. Música de encomenda ela não faz:
Independente, Joyce tem excelentes relações com nossa aristocracia musical – seu telefone não para de tocar com pedidos de música vindos de estrelas de todas as constelações de nosso cancioneiro. Música de encomenda ela não faz:
- É um processo muito intimo não se pode forçar. Mas
às vezes a música sai com a cara de alguém. “Ardente”, por exemplo, eu fiz
pensando no Ney Matogrosso. Eu mesma não teria coragem de cantar essa música.
Da nova safra ela tem “Prenda” no disco de Maria
Bethânia – era um dos melhores momentos do show do Canecão – “Brilho e paixão”
dando titulo ao clipe de Joanna e “Memória” no álbum de estréia de Fafá de
Belém para a Som Livre. Como todo ano, ela já fez uma canção para Roberto
Carlos – “Casais”, falando “nessa espécie antiquada de relação todo mundo diz
que está em extinção.” Se Roberto gravar, ela diz, sua horta no Recreio e mais
discos estão garantidos:
- Vida de compositor é feito jogar na Loto. Com Fafá,
Bethânia e Joanna eu já fiz um terno, está bom. Se o Roberto gravar, a quina sai
pra mim.
5 Comments:
'Baracumbara' … Meu Deus, vou ter de te confessar uma coisa, Joyce. Descobri essa música ano passado (não me queira mal por isso, aliás, gosto muito de ' ir descobrindo' seu repertorio ), passeando pelo You Tube, e, literalmente, saí do chão . Melhor dizendo, 'fui saindo do chão' conforme ela ia avançando.
Que é isso,Joyce? Que música é essa? O incrível é que eu não conseguia parar de ouvi-la, foi uma tarde inteira ! … Uma espécie de encantamento. Aquela segunda que ela tem, nossa, é de todos os deuses do Olimpo, aliás é exatamente aí que ela me tira do chão. Aquelas vozes, então, meu Deus... Daí, Baracumbara entrou para minha trilha pessoal, inevitável. Ouvi-la na estrada é quase nirvânico. Então, se você puder me situar essa obra de arte, vou ficar bem feliz. De coração . SB
Sandra, foi feita pra trilha sonora de uma peça teatral, de um grupo de Paraty chamado 'Os Contadores de Históriad', que trabalha com manipulação de bonecos. Mas isso foi no século passado...
Joyce, a entrevista do post anterior eu me permiti apelidar de "Joyce para inciantes", pois quem te acompanha há mais de trinta anos , lê o blog, já sabia de tudo isso e para o "Brasil que não conhece o Brasil" a entrevista consegue dar uma situada muito boa no seu trabalho e na sua pessoa.
Quanto a essa , que fala do Tardes Cariocas ( um dos meus discos preferidos , desde a capa com as fotos, que eu sempre imaginei tiradas de alguma murada de beira de rua em Sta Tereza, numa tarde, com o barulho do bonde Dois irmãos passando perto....) eu gostei muito porque revelou a característica musical de teu trabalho e os caminhos que ele estava COMEÇANDO a seguir. Me achei mais "conhecedor" de teu trabalho, uma vez que eu consegui adquirir o lp aqui no sul da ilha, _deve ter vindo muito poucos para cá_ e canto os meus hits desde então , no lp, ou no ipod, batem direto: "baracumbara", "nuvem", "curioso" e o quase mantra cheio de lições e valores pra vida: "duas ou três coisas" , que na minha adolescência, um dos versos era frase de meu cartão de natal, ainda postado em correios para os amigos, nos anos 80: Nesse novo ano que se inicia "não vá pela sombra,não. Deixe o dia, deixa a luz te colorir"
E hoje, é frase que repito para filhas: "quem está com Deus não corre perigo, vá onde o vento te levar" , mas te liga "no bonde dos sonhos" segue nele, batalha, mas fica ligada, saiba sempre que as vezes é hora de descer antes do fim da linha "na curva do mar", sempre belo e real, pra repensar, aprender e retomar a caminhada
Bjs!
E de onde recuperaste tão bela entrevista?
Mil perdões, Marcio Pinheiro, eu deveria ter lhe dado o crédito dessa descoberta arqueológica... Foi você o descobridor, claro!
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