quinta-feira, fevereiro 15, 2007

inútil paisagem

Eu deveria estar falando aqui das alegrias que a gravação de um novo disco tem me dado. Da música, dos músicos, do som, tudo de bom. Mas hoje não dá, hoje não posso.

Até aqui cheguei. Esta não é mais a minha cidade, este não é mais o meu país. Este não é mais o meu lugar no mundo, como eu pensava que fosse. O Rio de Janeiro que amamos, e pelo qual trocamos as mais tentadoras ofertas de vida em outras paragens, não é mais a cidade onde eu pretendia envelhecer e morrer. O Rio era do Tom, como Roma é de Fellini e Nova York, do Woody Allen. O Rio era meu também, não é mais.

Hoje, pela primeira vez em muitos anos, pensamos seriamente em ir embora. Pra onde, não sabemos, mas dentro do Brasil não será. Pois o Rio é a vanguarda de tudo, e o que acontece aqui hoje, vai acontecer amanhã ali mais adiante. Minha casa está em perigo. Minha família também. Tom tem 14 anos e meio e começou a sair sozinho na rua há um ano. Já foi assaltado duas vezes, felizmente sem maiores conseqüencias _ mas não posso achar que isso seja normal. Um adolescente tem de ter o direito de ter uma cidade para chamar de sua, conhecer suas ruas e seus caminhos, ir pra escola e voltar pra casa sem que nenhum mal lhe aconteça. Tenho visto adultos fazendo o sinal-da-cruz ao sair de casa, como antigamente eu só via as pessoas fazendo ao entrar no mar ou no palco, que são sabidamente lugares de risco.

Não se trata mais apenas de violencia e crime. Atravessamos a fronteira da humanidade, da civilização, do inominável. A treva tomou conta da luminosa e inútil paisagem. Minha alma chora.

(texto escrito sob o impacto da morte de João Hélio, 6 anos, durante um assalto na Tijuca)

11 Comments:

At 5:16 PM, Anonymous Anônimo said...

Minha querida Joyce
li as as suas palavras e fico pensando, como isto tudo é triste.
Nunca fui ao rio, uma cidade que me encanta mas que me mete medo.
tenho de amigos relatos de experiências não muito agradáveis no rio, não em relação a assaltos, mas na convivência com os cariocas que, não sei se devido a estes tristes tempos, parecem gostar de maltratar os turistas.
Parece que o carioca que sempre foi alegre e agradável virou outro tipo de pessoa, devido a toda esta violência atual.
Não só o rio mas todas as grandes cidades do país tem sua cota de violência aumentada.
Não sei onde vamos parar.
Acho que tudo se resume a uma só palavra, impunidade.
A lei pedida por referendo popular que estipulava que culpados crimes hediondos não teriam direito a indultos e livramentos condicionais, foi vetada pelo supremo tribunal.
É mais uma vez a justiça passando a mão na cabeça dos criminosos em vez de puni-los.
E isto em todo o país.
Será que a solução é o exílio?
Sair e deixar o brasil para a barbárie?
Para mim um brasileiro comum sair e ser tratado como lixo fora do brasil não é a solução.
Você como artista teria é claro um tratamento diferenciado.
Mas correria um outro risco, no caso de um artista muito maior em relação a sua arte.
Perder aquilo que torna brasileiro e único o seu trabalho, devido a perda de sua raiz.
Conhecemos casos e casos de artistas brasileiros que foram buscar o eldorado lá fora, conseguiram, mas com o tempo perderam aquilo que os torna brasileiros, perderam seu norte.
Neste ponto invejo os argentinos, pois se algo semelhante ao que aconteceu nos últimos tempos tivesse acontecido lá as ruas estariam apinhadas de manifestantes exigindo justiça.
E nós apáticos em frente a tudo.
Apenas vivendo o circo do carnaval.
Mudar para uma cidade menor próxima aos grandes centros mas ainda tranquila, seria uma solução? (creio que seria pelo menos uma solução temporária)
Brigar e se manifestar exigindo mudanças em relação a isto tudo isto sim deveria ser feito.
Dizer basta de impunidade, queremos justiça.
pressionar por mudanças.
acorda povo acorda brasil

 
At 11:53 AM, Blogger Sils said...

Cara Joyce
Ontem , por coincidência , em uma discussão com amigos sobre o inevitável
cinismo de quem mora no Rio de janeiro perante a cruel realidade , citei você
como exemplo de verdadeiro amor e carinho por esta cidade . Afirmei que
seu amor , e de outras pessoas iluminadas , sustentavam a esperança de
que um lugar tão belo e que gerou tantas pessoas criadoras de outras belezas,
conseguisse ser o que foi sonhado e cantado .Conseguisse ser maravilhosa.
Se foi um dia , poderia vir a ser outra vez .
Hoje , lendo seu texto , me pergunto o que será deste lugar sem você.
Eu não sou daqui , como sabes , mas aprendi a perceber que esta cidade
se mantém de pé por causa da qualidade de quem gosta realmente dela .
Esta qualidade de poucos , que de tão poderosa , supera a baixeza de tantos
e nos lembra o privilegio de estar em um lugar berço de tanta beleza.
Musica , livros , paisagens , pessoas .
O que será deste lugar sem você?

Silvio D'Amico

 
At 12:49 AM, Anonymous Anônimo said...

Estou em Santa Catarina, que nada mais é do que uma porção de praia maravilhosa cercada de argentinos por todos os lados, na areia comecei a escutar um “clap, clap ” logo soube que era um sinal dos nossos “hermanos” de que havia criança perdida, eles batem palmas e aquele que avistar uma nessa situação a coloca nos ombros para que todos enxerguem e encerrem a angústia – que nem é preciso ter vivido para imaginar o quanto é aterrorizante – Só que dessa vez a situação estava demorando, a mãe corria como uma cadela à procura das crias, tentava manter a calma e às vezes gritava em desespero, os olhos arregalados saltados a frente do corpo vasculhando cada palmo de areia por onde passava. A criança foi localizada, um amigo falou “ esses argentinos podem ser o que for, só que nenhum brasileiro faz o que eles fizeram quando se perde uma criança na praia”. Realidade, nenhum de nós faz isso, nos solidarizamos, mas não temos esse sentimento de união, não saímos por ai batendo palmas pelos filhos dos outros que se perdem, aliás, não somos unidos por nada, nem no próprio futebol, e por essa falta de união que no ano passado só uma mulher batia panelas na frente do prédio da receita federal em Porto Alegre e um outro tentou invadir Brasília sozinho com um trator, muitos os taxaram de loucos. Um povo que não bate palma por seus filhos também não irá bater panelas por uma política mais justa, por educação, um povo que não se une por seu próprio semelhante não vai se unir por absolutamente nada. Argentinos podem ser nossos rivais, podem inflacionar nosso veraneio, mas tem no sangue o senso de união que nos falta. A tragédia do Rio contra uma criança, a dor daquela família não há o que se falar, a revista semanal pergunta o que nós fizemos? A resposta é não fizemos nada, não batemos palmas uns pelos outros, nos falta união e às vezes acho que vivemos num eterno big-brother como vimos acontecer na manifestação que ocorreu no Rio pelo menino morto: as pessoas indo para as ruas, com velas acesas, em volta de um prédio iluminado pedindo paz, a novela das oito abrindo uma brecha para falar do ocorrido, com imagens magníficas do Redentor ao som de ave-marias, e tudo se transforma num espetáculo de luzes, velas, olhos lacrimejados e muito ibope. De tanto assistir novela Brasil parece que vive eternamente numa dessas páginas da vida, vive todo o drama, mas parace não se dar conta de que aquilo é real e fica sempre a espera de um final feliz que não vai acontecer nunca se não nos pusermos a trabalhar por ele, se não sairmos por aí batendo palmas, panelas ou gritando por dignidade, segurança e cidadania, somos passivos demais e o pior é que nossos governantes sabem disso, apostam nisso, e infelizmente sempre ganham.

 
At 5:01 PM, Anonymous Anônimo said...

Joyce querida.
É triste, mas acredito que todos, em algum momento, já pensaram em ir embora. O desânimo e a quase descrença são proporcionais ao nível de barbárie. Alguns se foram mesmo, outros não o fizeram porque não tiveram coragem, outros por não ter meios, e outros ainda por que acreditaram em ficar. Tenho certeza que vocês estão e sempre estarão entre a maioria, os da última opção. Afinal, apesar do perigo, aquilo que vocês fazem na vida - a música que vocês vieram fazer - é algo de que as pessoas daqui necessitam. Essa voz que ouvimos agora não é a do Rio. A sua voz sim (e que voz) é a voz do Rio, e a voz das baquetas do Tutty também. E estão somadas a tantas outras vozes que não querem a barbárie. Essa bela soma nunca seria a mesma sem vocês. Fique por aí, é uma crise dura, mas dias melhores virão.
Sergio

 
At 11:11 AM, Blogger Wilson said...

Joyce

Tal como você continuo carioca. Quem deixou de ser carioca foi o Rio. Por isto fiz como meu pai, que chegou ao Rio na carona da migração nordestina para o sudeste 60 anos atrás, deixando um lugar que parecia não lhe oferecer futuro: peguei carona na outra migração, a sudestina em direção ao nordeste. Deixei para trás uma terra social e afetivamente árida que não reconheço mais como o lugar onde nasci, em busca de qualidade de vida. E agora me sinto como se estivesse no Rio dos anos 60/70. É a sensação compartilhada por outros cariocas quando chegam aqui nas imediações de Natal, RN.

Natal é um lugar atrasado num quesito fundamental: aqui a degradação social e urbana se encontra em estágio primitivo, não avançou o suficiente por falta de um ingrediente fundamental para isto: gente. Não tem aqui gente em quantidade suficiente para sujar as praias, por exemplo.

Em algum ponto dos anos 80 o Rio ultrapassou o ponto-de-não-retorno. Aqui isto ainda não aconteceu. E ainda dá para fazer alguma coisa para segurar ou desviar o processo. Aqui a gente se sente emissário do futuro: já vimos aquele filme em diversas reprises, sabemos como termina. Só que podemos interferir na ação e mudar o final. Esta é uma grande diferença...

Nós cariocas não fomos extintos. Arrasaram nossa cidade, mas não conseguiram acabar com a gente. Só não estamos mais no Rio. Nossa cidade agora é outra. Foi isto o que mudou: nosso lugar.

Você não precisa sair do Brasil: se olhar bem vai encontrar o Rio e os cariocas em outros lugares aqui mesmo.

 
At 12:10 PM, Blogger Unknown said...

Joyce

Talvez vc nao saiba e nem ficaria sabendo mas sua cronica`Inutil Paisagem`saiu hj, dia 24.02, na Folha de S.Paulo, 2a. página, transcrita por nada menos que Clóvis Rossi.

Também tenho 3 filhos, sei do seu desespero. Perdemos a guerra. Conheco o Rio, morei aí alguns meses, adoro seu povo. Hj tenho medo do Rio. Felizmente aqui em Rio Preto/SP a coisa não está tão feia.
Desejo que encontre o sossego q vc e sua família mrece.
Sds.
Edvil

 
At 10:38 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu e meus irmãos aos oito nove anos já iamos pro colégio de ônibus no fim da década de setenta ecomeço da de oitenta, lá em Olinda.
Com as minhas primas não foi o mesmo.Hj os adolescentes não podem sair de casa...
Como está td diferente...Nesse ponto, é uma grande pena.

Abraço, Cris

 
At 12:37 PM, Anonymous Anônimo said...

Cara Joyce
Ao visitar um amigo, ele pegou a Folha e leu seu artigo. A minha queixa era o seu sentimento, de que a esta casa não é minha e nem é este o meu lugar...a vontade que tudo possa mudar e que nada deveria de estar assim como está. E o que podemos fazer?
Mas o que me assusta é o seguinte trecho, que vc diz:

"Pois o Rio é a vanguarda de tudo, e o que acontece aqui hoje, vai acontecer amanhã ali mais adiante. Minha casa está em perigo. Minha família também."

Tenho tres filhos, moro numa cidade com quase um milhão de habitantes e vejo acontecer o que já acontece no Rio.
Infelizmente a obescuridade da consciencia dos homens de poder, tratam a situação atual com descaso.
Só nos resta fazer o sinal da cruz e pedir a Deus muita proteção.
Ana Braga

 
At 4:06 PM, Anonymous Anônimo said...

Nao e' verdade que Brasileiro (ou qualquer outro estrangeiro) seja tratado como lixo fora do Brasil. Eu desisti de uma vez por todas do Brasil ha' oito anos, vim para os EUA legalmente (para estudar, mas depois fiquei, quando apareceram oportunidades profissionais excelentes), e aqui recebi o reconhecimento profissional que me foi negado no Brasil em favor de filhos desse ou daquele. Vivo bem, com conforto, seguranca, reconhecimento, paz e sou um cidadao aqui. Nunca me arrependi de haver decidido ir embora para sempre. Bye bye, Brasil, a ultima ficha caiu. Joyce, com sua historia, garanto que ha' varios paises onde voce pode viver melhor, pergunte ao Ivan Lins ou a outros artistas que deixaram o Brasil. Mas saia o mais rapido possivel, antes que seja tarde demais.

 
At 7:39 PM, Anonymous Anônimo said...

Querida Joyce.
Que grata surpresa! Acabo de descobrir seu blog. Sou sua fã, tenho vários discos seus, incluindo alguns vinis. Sou mineira apaixonada pelo Rio e fico muito triste com o que anda acontecendo por aí. Hoje foi dia de descobertas, pois além do seu blog encontrei uma charge muito sensível em homenagem a João Hélio. Se tiver tempo, dê uma passadinha por lá. Vale a pena ver a sensibilidade e delicadeza so artista. Beijos.

 
At 10:54 PM, Blogger Angela Garcia said...

Angela Garcia
Também descobri esse blog hoje, numa comunidade do orkut. Que gostosa suspresa! Não vale dizer que gosto do seu trabalho, faz muito tempo, não? Sua voz é doce, seu violão, o fino, suas músicas, "ótemas"! Sabe que, de vez em quando, te escuto na rádio daqui, 88.3 WBGO, Newark? Você e outras coisas boas do Brasil. Fico toda "cheia"... Essa é do Brasil!! Mas quando leio as notícias do mundo de lá... fico querendo ficar por cá...
Mas deixei meus velhinhos e uma filha, não posso.
Passarei sempre por aqui. Com certeza. Beijos, se cuida!

 

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