nem vem que não tem
Assistindo ao excelente documentário sobre Wilson Simonal, duas ou três coisas não me desceram muito bem. A principal delas foi a sensação, que aos poucos vai se confirmando, de que alguém em algum momento iria/irá tentar “reabilitar” a pilantragem, que o próprio Simonal descreveu como “total descompromisso com a inteligencia”, como se fosse um importante movimento musical, caído injustamente no ostracismo. Nem vem que não tem: a pilantragem nunca foi um movimento. Era apenas uma rapaziada esperta, a fim de se dar bem e faturar uma grana e algumas garotas.
De todos os depoimentos do filme, o que me soou musicalmente mais sensato foi o de Sérgio Cabral: "a pilantragem era uma bobagem musical, que não deixou nenhuma marca na música brasileira. Simonal era muito melhor do que aquilo". E era mesmo. Pra quem foi adolescente no Rio de Janeiro dos anos 60 e dançou ao som suingado do sambalanço, é no mínimo frustrante não ver no filme praticamente nada do cantor espetacular que lançou coisas como 'Mestiço', 'Balanço Zona Sul', 'Mais Valia Não Chorar', 'Samba de Negro', 'Mangangá', 'Juca Bobão', “Nanã’ e outras delícias. Tudo isso dá-se por subentendido através da cena dele com Sarah Vaughan _ um belo momento, por certo, mas apresentando nosso anti-herói mais como um possível cantor de jazz do que um artista que teve real importancia na MPB dos anos 60.
Para a maior parte do público atual, que não viveu nada disso, a compreensão que fica é outra. O filme privilegia o Simonal animador de auditório, foca no seu indiscutível carisma, dominando a platéia de 30 mil pessoas do Maracanãzinho _ eu vi, eu estava lá _ "agora cantam só os 15 mil deste lado, agora só os 15 mil do outro, alegria, alegria!" E tome-lhe 'Meu Limão, Meu Limoeiro', 'Mamãe Passou Açúcar ni Mim' e coisas do tipo. Esse não era mais o Simonal que os músicos adoravam. Era um fake de si mesmo, uma caricatura. A curva descendente já começava, por escolha própria, muito antes de tudo o que viria a acontecer mais tarde _ e, repito, estou falando exclusivamente da música.
A pilantragem era de fato uma grande e inofensiva besteira musical, ainda que às vezes viesse embrulhada para presente, pela mão de arranjadores como César Camargo Mariano e Erlon Chaves, e usando como veículo uma voz como a de Simonal. O cantor-músico que ele era começou a se deslumbrar com dinheiro e sucesso fácil, e acabou deixando para trás o próprio dom. Não dá para imaginar um garoto vindo de família pobre, enfrentando preconceitos de raça e origem social, vencer na vida de maneira tão assombrosa e não perder a cabeça com isso. Perfeitamente humano. Para quem o acompanhava e admirava desde o início, parecia um desperdício de talento. Porém previsível, dado o mentor que ele escolhera para chamar de seu, o inenarrável Carlos Imperial.
Nas biografias de Clara Nunes e Roberto Carlos, dois dos maiores ídolos do Brasil de todos os tempos, está lá, com todas as letras: Imperial foi parte do início de carreira dos dois. Para Roberto, ele imaginara uma alternativa a João Gilberto, uma espécie de bossa-nova do B, só que usando suas composições (dele, Imperial) em vez das de Jobim, Menescal e Lyra. Claro que não daria certo. Para Clara, de brasilidade incontestável, ele propunha versões e boleros. Essas tentativas iniciais estão registradas nas primeiríssimas gravações de ambos. E ambos tiveram o bom senso de se desembaraçar do mentor e seguir caminho próprio, no momento certo.
Simonal, não: estranhamente, quando passou a ser aconselhado por Imperial, ele já era um artista querido do público, com todo o prestígio possível. Mas não era ainda o superastro em que se transformaria depois. Imperial, que estivera presente em seu início de carreira, voltava a influenciar o antigo pupilo, quando este, em tese, não precisaria mais da influencia de ninguém. Parecia um retrocesso, e era. Mas Simonal possivelmente queria mais _ mais dinheiro, mais sucesso _ e fez suas escolhas. Talvez tivesse conseguido assim mesmo, sem pilantragem, só com seu extraordinário talento. Quem sabe?
O argumento de que “a esquerda” odiava Simonal por ele ter gravado ‘País Tropical’ também não desce bem. Mesmo os mais empedernidos opositores do regime militar naquela época não tinham a menor dúvida de que "País Tropical' nada tinha a ver com patriotadas do tipo 'Eu te Amo, Meu Brasil'. Jorge Ben e Simonal não eram Dom e Ravel (aliás, Benjor teria sido uma importante adição aos depoimentos. Talvez tenha optado por não participar). Nem o capitão Lamarca, se saísse vivo da clandestinidade, poderia ter qualquer restrição a essa recriação suingada, divertida e tropicalista do poema de Bilac, aprendido na infancia: "Ama com fé e orgulho a terra onde nasceste/Criança, não verás nenhum país como este!" Pois fosse qual fosse o governo da hora, o Brasil, como o Rio de Janeiro, continuaria sendo. Na minha memória, ainda é bem claro: todo o mundo adorava ‘País Tropical’, de A a Z, de um extremo ideológico a outro. Nem vem que não tem, de novo.
O pessoal do Pasquim também leva, a meu ver, culpa exagerada como detrator único de Simonal (inexplicavelmente, faltou o crédito dos desenhos, mas dá para se reconhecer claramente a mão pesada de Henfil nas charges onde Simonal é apontado como dedo-duro). Essa acusação, mesmo que injusta, já tinha saído largamente na imprensa diária, a partir do depoimento de um dos agentes do DOPS envolvidos no sequestro do contador. E das declarações do próprio Simonal.
Por que as conexões mafiosas com o tenebroso DOPS? Por que ele teria se apresentado como “amigo dos hômi”? Para mim, a melhor explicação, no filme, vem de Pelé: se Simonal era capaz de acreditar seriamente que iria ser chamado para ponta-direita da seleção brasileira de 1970, seria capaz de qualquer coisa. Um caso de mitomania, ou como dizem os americanos, self-delusion. A pessoa acredita ser o que não é. Pena que com desfecho tão trágico, destruindo uma carreira que poderia muito bem ter dado todas as reviravoltas possíveis e terminado gloriosamente em palcos do mundo inteiro _ se dependesse só do cantor genial que ele era.
PS- Renato, obrigada pela página enviada sobre o festival de 1969, boa lembrança. O "nós estamos por aí sem medo" do comecinho da letra de 'Copacabana Velha de Guerra' era exatamente o nosso tímido recado de estudantes aos militares. Não derrubamos o governo, mas Elis, que era jurada do festival, sacou a música na hora e gravou em seguida, dando início à minha carreira de compositora gravada por outras intérpretes.
11 Comments:
o Simonal me lembra sempre o caso do Henry Mancini...embora um não tenha absolutamente nada a ver com o outro, ambos tiveram momentos preciosos, de criatividade exemplar, e ambos tiveram momentos péssimos, onde o lado "comercial" e consequentemente a grana decorrente disso ficava em primeiro plano...por outro lado, não me lembro de uma determinada cantora, uma "tal" de Joyce, fazer concessões comerciais...que nem o "tal" de Dori Caymmi...rsss...
joyce,
de pilantragem pra piratininga...rs
recebi um flyer bacanudo...trio torrente, no próximo dia 29,em sampa, convida joyce.
ele inclusive esteve por aqui,alguns meses atrás, apresentando-se bem em frente de onde trabalho...infelizmente,não foi possível assisti-lo...junto com o sadao,marcel e corza.
o que será que vocês estarão preparando?...infelizmente esse encontro também perderei.
ps.já não se faz pilantras como antigamente...rs
amplexossonoros
Ah! como é bom ouvir as histórias por todos os ângulos. Acredito piamente na sua versão. Valeu todos esses esclarecimentos. bjos, Miroca
Esse seu comentário foi o mais lúcido que já ouvi sobre o grande Simonal. Realmente ele era um cantor sensacional, mas que se perdeu depois que passou a seguir os passos de Carlos Imperial.
Quem nunca errou que atire a primeira pedra................
joyce beleza de texto.
me lembro do Simonal cantando musicas marcantes na minha infancia..entre 68-70 (Sah Marina e Pais Tropical),super vivas e intensas na memoria.
muito positiva a sua posizao.
abs/bjs
paul
ah..tem A Tribo no musa..
Cada um faz as suas escolhas na vida: musicais, estéticas, políticas, pessoais. O Simonal fez as dele, você as suas, Joyce. Ao menos na minha CDteca, vocês convivem numa boa. Abraços.
Joyce,
O seu texto é muito bem escrito, mas, na minha visão full screen, a Pilantragem é bem melhor do que a tal da Tropicália - pelo menos a primeira é vibrante, gostosa de ouvir e gerou frutos bem interessantes, como três discos de Claudette Soares entre 1969 e 1970, todos os do Som 3 e o próprio "Mustang Cor-de-Sangue", de Marcos Valle, que é pop mas de altíssima qualidade. Há outra pérola insuspeita no estilo Simonal, que é a gravação que a musa Nara Leão fez para "Pisa na Fulô", de João do Valle, no álbum "Coisas do Mundo", também de 1969. E, embora o melhor disco de Simona seja "A Nova Dimensão do Samba", a fase posterior dele também merece ser ouvida com mais atenção.
KL
"Você pode até dizer que a pilantragem foi um truque, mas em nenhum momento pode dizer que ela é música ruim" (Zuza Homem de Mello, no livreto que acompanha a caixa de CDs "Wilson Simonal na Odeon, 1961-1971).
E aí, Joyce? O Zuza é um bobalhão que não sabe o que diz?
Também acho a pilantragem muito mais rica que a tropicália, sobretudo musicalmente — ao contrário da maior parte dos brasileiros, não dou tanta bola pra letra de música; prefiro ler poemas.
Agora, você diz aqui:
O argumento de que “a esquerda” odiava Simonal por ele ter gravado ‘País Tropical’ também não desce bem. Mesmo os mais empedernidos opositores do regime militar naquela época não tinham a menor dúvida de que "País Tropical' nada tinha a ver com patriotadas do tipo 'Eu te Amo, Meu Brasil'.
Como se apenas a esquerda se opusesse ao regime militar... E, por exemplo, Ulysses Guimarães? Mas reconheço: a democracia morreu por falta de quem a defendesse, tanto no poder dos militares como na oposição terrorista, nenhum aspirando a uma reforma democrática.
Bom, eu sou meio sapo de fora na conversa, tenho 37 anos, não vivi nada da ditadura militar, talvez só os últimos anos, sob o governo Geisel. Então minha óptica é diferente. Me sinto roubado! Por só haver ouvido falar nesses anos todos de um dedo-duro da ditadura chamado Wilson Simonal e não ter conhecido nada do artista. O filme, sendo ele imparcial ou não, tentando ou não reviver o pseudo-movimento da pilantragem, trás de volta (tardiamente, poderiam ter aberto esse baú antes da morte dele)o artista pra conhecimento das gerações que foram privadas dele. E quem realmente se interessar, meu caso, vai pesquisar e vai descobrir o trabalho de qualidade.
Acho que já era mais que a hora de anistiarem o sujeito. É uma opinião de alguém que não viveu a época, mas acho que talvez seja importante até por ser um outro ponto de vista.
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