sexta-feira, outubro 01, 2010

um grande país eu espero do fundo da noite chegar

Recebi pela internet este texto, que eu já tinha lido na edição on-paper d'O Globo desta quarta-feira, e repasso para quem quiser ler. Muita lucidez e clareza por parte de um jovem pensador, Francisco Bosco, a quem respeito cada vez mais. Um segundo turno é sempre bom. Quanto mais tempo para debater e discutir ideias, melhor. Voto é coisa séria. Quem viveu 21 anos de ditadura militar sabe bem disso. E, pelo visto, quem não viveu tudo isso, sabe também...

 

 

Declaração de voto

Estatura moral e simbólica é justamente o que Marina me parece ter de sobra

 

Francisco Bosco – coluna publicada 29/09/2010 no Segundo Caderno (O Globo)

F. Scott Fitzgerald, o autor de “O grande Gatsby”, pensava que “uma inteligência de primeira linha” deveria ter “a habilidade de sustentar duas ideias opostas na mente, ao mesmo tempo, e ser capaz de operar desse modo”. Concordo. Procuro ter uma visão ambivalente e complexa da realidade; desconfio das perspectivas demasiadamente seguras e unilaterais. O cenário político brasileiro, às vésperas das eleições, exige um modo de pensar fitzgeraldiano. Tentarei exercê-lo aqui, apesar do pouco repertório que tenho nesse campo.

De início, o que caracterizou o governo Lula, no conjunto de seus dois mandatos? A referência à tese de André Singer, ex-porta-voz do presidente Lula, me parece incontornável.

Para ele, houve, nesse período, um realinhamento do eleitorado brasileiro: a classe média afastou-se do PT, cuja base de votos passou a ser a classe mais baixa, grande maioria do eleitorado.

 

Parte da esquerda não suportou a decepção com o alinhamento de Lula às diretrizes principais da macroeconomia no período FHC: altos superávits primários, juros elevados, autonomia do Banco Central. Ao final de 2003, os dissidentes fundaram o PSOL. O escândalo do “mensalão”, em 2005, acrescento eu, terá contribuído para afastar do PT eleitores de sensibilidade republicana, e foi uma ferida até hoje não cicatrizada na estrutura moral do partido.


Entretanto, segundo Singer, desde o final de 2003 o governo Lula lançava as bases do que futuramente lhe asseguraria altíssimos índices de aprovação junto às classes mais baixas: o Bolsa Família, um vasto programa de crédito e, em seguida, um aumento progressivo e significativo do salário mínimo. O conjunto de medidas elevou bastante o poder aquisitivo dos mais pobres, fazendo surgir um poderoso mercado interno de massas, movimentando a economia brasileira.

 

Assim, ao final do mandato, apesar do mensalão, Lula sagrou-se reeleito. De lá para cá, a economia tem crescido com constância, milhões de empregos foram gerados e o Brasil atravessou sem maiores turbulências a crise sistêmica do capitalismo em 2008. Tudo isso me parece irrefutável.

 

Mas o lulismo segundo Singer tem seu outro lado da moeda. É o lulismo da condescendência ao velho fisiologismo da política brasileira, da omissão diante de questões morais que exigem uma postura clara e inflexível, do culto à personalidade, das tentações autoritárias de controle da imprensa e das artes. Além disso, há ainda o tão propalado aparelhamento do Estado, que parece ser a versão petista, mais ideológica, do tradicional “Estado patrimonial de estamento”, como diria Raymundo Faoro.

Tudo isso vem sendo compendiado, com exatidão e clareza, nas colunas de Merval Pereira, desde 2002, e agora reunidas no livro “O lulismo no poder”. Merval me parece imprescindível, mas discordo quando ele afirma que não houve reformas estruturais no governo Lula: não consigo ver uma reforma mais fundamental que a diminuição drástica da pobreza.


Acredito que o governo Dilma manteria as virtudes principais do governo Lula, mas temo pelo agravamento dos seus defeitos, dadas as condições de alta popularidade e ampla aliança política.


Tenho pavor de totalitarismos.


Uma das frases-guias da minha vida é aquela de Thomas Jefferson: “Prefiro as inconveniências decorrentes do excesso de liberdade às decorrentes de um grau pequeno dela.” Por isso, penso que a alternância de poder é importante para a democracia.

 

O que fazer, então? Aqui devo dizer que estou entre aqueles para os quais o Brasil fez progressos extraordinários no período FHC-Lula. Sou democrata convicto e de forte tendência reformista. Reconheço que a perspectiva reformista é facilitada numa situação, como a minha, de classe média (embora, segundo Singer, o eleitorado de baixíssima renda também deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem). E reconheço ainda que parte da esquerda encara o reformismo lulista como uma decepção diante do sonho de justiça social mais rápida e igualitária.

O que fazer? A candidatura de Serra padece de uma dificuldade que o psicanalista Tales Ab’Sáber descreveu com exatidão: Lula, ao realizar um governo “de grande liberdade liberal”, ao seguir, e talvez aperfeiçoar, a linha macroeconômica do governo FHC, “roubou a verdadeira base social tucana”.
Não vejo, com efeito, em que a candidatura Serra se diferencia fundamentalmente da de Dilma.


Marina Silva, entretanto, sinaliza com uma diferença importante. Se o governo Lula se definiu por uma profunda transformação material, sobretudo entre as classes mais baixas, definiu-se também, pelas razões já expostas e ainda outras, por certa precariedade moral e simbólica. Estatura moral e simbólica é justamente o que Marina me parece ter de sobra. Não apenas pela centralidade da questão ambiental, mas por sua altivez e elegância e pelas declarações tão equilibradas como incisivas. É óbvio que sem uma base material digna, sem justiça social econômica mais profunda, não se pode pleitear um enriquecimento simbólico.


Mas esse rumo acredito que o país não perderá, seja com quem for.
Tudo somado, então, apesar de reconhecer os feitos, notáveis, da gestão Lula, e enxergar virtudes na figura política de Serra, meu voto vai para a candidata que me parece sinalizar para um projeto civilizatório que ultrapasse o desejo, humanamente acanhado, de comprar um iPhone ou uma TV de plasma de 30 polegadas.

 

4 Comments:

At 2:00 PM, Anonymous Anônimo said...

"....razões já expostas e ainda outras, por certa precariedade moral e simbólica....."

Fora os Ministérios de "Nosso Lar", desconheço no planeta Terra qualquer governo que não seja pautado por precariedade moral e simbólica. É por isso que Marina não emplaca;

 
At 3:37 PM, Blogger joyce said...

Concordo, Anônimo. Mas primeiro turno é para se votar com o coração mesmo...

 
At 2:34 PM, Blogger pituco said...

joyce,

aqui inventaram de se atrelar o voto com os serviços consulares...ou seja, se o residente brasileiro quer renovar o passaporte, precisa apresentar comprovante de que votou nesse último pleito...só rindo mesmo!

se não houver justificativa no período de trinta dias, quem não votou e precisa renovar o passaporte, vai ficar sem sair pra lugar nenhum...é mole?

até então, essa burocracia era cumprida quando de regresso ao brasil.

o brasil não é pra principiantes!...saravá, maestro jobim.

abraçsonoros e indignados

 
At 10:33 AM, Anonymous Angela Garcia said...

Concordo plenamente com vc que é preciso votar com o coração no primeiro turno. Mas... "e agora José"? E agora que meu cérebro precisa decidir, sem que meu coração se machuque muito?...

Sempre passo por aqui, mas o tempo parece que tem um certo descompasso comigo... "Inveja" por vc poder estar tão perto dessas pessoas, Diana, Stacey, Joyce...Ahahahah!
Beijos!
Angela Garcia

 

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