domingo, outubro 14, 2007

fé e confronto

Minha sobrinha Nayra (comigo aí na foto), que é budista praticante, me mandou o texto abaixo, que reproduzo aqui para vocês, esperando que o autor _ que não conheço _ não se incomode. Gostei muitíssimo, até porque em nossos estudos semanais dentro de nosso grupo espírita a conclusão tem sido, com poucas variantes, a mesma. O texto é longo, mas vale a pena. Vejam só:

A Luta Budista Pela Paz e Pela Ética: Será Correto Confrontar a Ignorância?
Carlos Cardoso Aveline

Do ponto de vista da filosofia esotérica, o longo confronto entre o povo e os militares de Mianmar merece ser examinado em profundidade. Os brasileiros de boa vontade têm algo sagrado a aprender com a luta dos monges e dos cidadãos da antiga Birmânia.

Quando se observa com atenção os fatos daquele país asiático, podem surgir algumas perguntas desafiadoras. Até que ponto, por exemplo, é sábio ou correto desafiar as injustiças?

"O caminho espiritual é o caminho da harmonia", dirá alguém. "Não é o caminho do confronto ou da violência. Talvez os monges devessem estar meditando e orando, ao invés de desafiar as autoridades da ditadura militar birmanesa. Por que motivo, então, milhares de monges treinados na filosofia universalista e fraterna do budismo decidiram enfrentar as autoridades do seu país?"

Na verdade, a falsa impressão de que "ser espiritual é evitar confrontos" constitui uma das armadilhas e ilusões mais perigosas no caminho do auto-conhecimento, e no caminho da ética.

Ser espiritual é seguir os princípios básicos da verdade universal - de acordo com a voz da nossa própria consciência e segundo o nosso grau de discernimento, sabendo que cometeremos erros e aprenderemos lições. Estes princípios universais estão presentes nas principais religiões e filosofias de todos os tempos, e a gradual compreensão deles nos leva a uma ética que é vivida de modo prático, espontâneo e natural.

É claro, porém, que se deve evitar a violência, e os monges de Mianmar/Birmânia têm sido sempre rigorosamente não-violentos.

O confronto das injustiças sociais e políticas - assim como o confronto da hipocrisia "espiritual" - deve ser feito através da força da paz interior presente em cada ser humano. Mahatma Gandhi chamava esta força de 'satyagraha', palavra que pode ser traduzida como 'firmeza na verdade', ou 'firmeza na sabedoria'.

Nos anos 1980, os 'empates' liderados por Chico Mendes na Amazônia eram confrontos feitos por seringueiros desarmados contra os destruidores da floresta, e aconteciam no próprio local da destruição, enquanto ela estava ocorrendo ou no momento em que iria começar. Essa forma de ação direta em defesa da floresta foi uma versão brasileira dos confrontos coletivos não-violentos que Gandhi promoveu décadas antes na Índia, sob o nome de 'satyagraha'.

Os bons confrontos de palavra e de pontos de vista também fazem parte da tradição zen-budista. Além disso, o budismo é a inspiração filosófica e espiritual de várias artes marciais orientais, nas quais se estuda a violência para melhor evitá-la e para eliminar as suas causas.

A síntese real e a verdadeira "harmonia paradoxal" entre posições frontalmente opostas é uma meta legítima a alcançar; porém, ela só pode ocorrer no território da ética e da justiça, isto é, quando as duas partes do conflito compartilham e têm em comum alguns princípios éticos básicos. Sem ética não pode haver uma verdadeira síntese, mas apenas uma conciliação superficial e não-durável entre fatores inconciliáveis como Paz e Injustiça, ou Paz e Falsidade. O mero conflito tampouco é solução.

Sem dúvida, o conceito de Fraternidade Universal é um instrumento central para que se possa compreender a evolução da vida em todos os níveis, e o pensador russo Piotr Kropotkin provou que, na evolução das espécies, a ajuda mútua é mais importante do que a competição.

No plano humano, é importante levar em conta que há uma diferença - nem sempre visível, porém decisiva - entre fraternidade e hipocrisia. Como diz a sabedoria popular do Brasil, "as aparências enganam". Portanto, "o hábito não faz o monge" e "nem tudo o que reluz é ouro". Este é um detalhe de grande importância, que ainda deve ser compreendido por alguns setores do movimento pacifista brasileiro.

Não basta fazer propaganda de uma atitude conscientemente pacífica e ostensivamente fraterna no plano das emoções pessoais. É preciso olhar de frente e com serena lucidez para a violência e a injustiça existentes hoje no Brasil. Fechar os olhos para os desafios e paradoxos da vida pode levar a um fazer-de-conta puramente infantil.

Não é correto, portanto, lavar as mãos e - em nome da paz - deixar de lado a verdade, ou a justiça, ou os princípios éticos. Seja no plano individual ou no plano coletivo, esse é o caminho da ignorância espiritual e não da sabedoria.

A conclusão inevitável é que tanto os monges ativistas como o povo de Mianmar estão corretos, do ponto de vista espiritual, ao confrontar e desafiar há décadas a opressão das 'autoridades' daquele país.

Literalmente, aliás, a palavra 'confrontar' significa 'colocar frente a frente'. O Jesus Cristo do Novo Testamento confrontou os "sepulcros caiados", os "mercadores do templo" e as autoridades religiosas da sua época. Helena Blavatsky colocou a sabedoria universal frente a frente com a ignorância socialmente organizada, e assim "confrontou" os dogmas religiosos e científicos do século 19. Leon Tolstoi, com seu cristianismo comunitário, desafiou de frente a injustiça social da velha Rússia. Mahatma Gandhi "confrontou" sem violência a dominação colonial na Índia.

Chico Mendes colocou-se frente a frente, confrontou com as forças econômicas e políticas cujo projeto histórico incluía - e ainda inclui - a destruição da floresta amazônica. Do mesmo modo, os monges budistas e demais cidadãos da antiga Birmânia confrontam, fisicamente desarmados, a ditadura militar e suas modernas armas automáticas.

É claro que a luta democrática em Mianmar não surgiu por acaso. O budismo é a mais filosófica das religiões. Ele tem pontos comuns com a teosofia, a filosofia esotérica e o taoísmo filosófico.

Qual pode ser, então, a contribuição ética central que o budismo de Mianmar dá para os movimentos sociais e o pensamento espiritual em todo o mundo, inclusive no Brasil?

Na primeira parte do século 21, tanto o pensamento político de 'direita' como o pensamento político de 'esquerda' parecem ter perdido grande parte do seu conteúdo ético. Há, também, uma decadência moral das velhas tradições e instituições religiosas burocratizadas, tanto no Oriente como no Ocidente. Estes fatos estão na fonte e origem da aguda decadência social / ecológica que vemos em diferentes regiões do mundo.

No entanto, a vida se renova incessantemente, de acordo com os ciclos e os ritmos do universo. Cada noite precede e prepara o nascimento de um novo dia. No Ocidente como no Oriente, já é inevitável que tanto o budismo, a filosofia ecológica, a nova ciência, a filosofia taoísta, a filosofia esotérica e o cristianismo não-sectário surjam hoje como fontes de uma nova ética e de uma nova proposta social que é simultaneamente global e local, individual e coletiva, feita de sonho e utopia, realismo e fatos concretos.

Neste começo de amanhecer planetário, a luta não-violenta dos cidadãos de Mianmar surge em 2007 como um novo raio de sol. Ela é um exemplo luminoso da confluência entre a filosofia espiritual profunda e a luta muito concreta pela justiça social. Ela é um exemplo prático de harmonia entre a sabedoria eterna e a vida cotidiana, e entre a paz interior e a coragem de lutar por um mundo melhor. Essa é a grande síntese a construir, também no Brasil.

2 Comments:

At 2:43 PM, Anonymous Anônimo said...

Carlos Aveline é o nome cívil do Lama Padma Samten. Ele é gaúcho e tem um templo tibetano em Porto Alegre.

 
At 4:59 PM, Anonymous Anônimo said...

Carlos Cardoso Aveline, o autor do artigo, é associado da Loja Unida de Teosofistas, LUT. Autor de diversos livros, Aveline não aderiu a religião alguma, mas estuda a sabedoria comum a todas as religiões. Ele edita o site www.filosofiaesoterica.com.
O comentário anterior está por isso incorrecto, Carlos Aveline não é lama nem tem nenhum templo budista.

 

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