sábado, setembro 01, 2007

(des)construção


Começa assim: você vê no jornal, na TV, na rua, uma profusão de anúncios dizendo alguma coisa como "Humaitá Verde", "Leblon com Charme", "Botafogo Tradicional". Nos informes publicitários, imagens do que resta de Mata Atlantica no Humaitá, das ruas charmosas do Leblon com seus prédios antiguinhos, dos velhos casarões de Botafogo. E, claro, dos novos empreendimentos imobiliários que eles querem que você compre, com área de lazer, piscina, apês decorados e outras surpresas.

O que eles não contam é que o verde será desmatado para a construção do complexo de prédios, e que os antigos predinhos e casarões, se não forem demolidos, estarão cercados por monstrengos semelhantes que lhes tiram a luminosidade e a vista. Eu mesma, em priscas eras, já fui moradora de alguns desses encantadores predinhos baixos, no Jardim Botanico e no Leblon, e me lembro muito bem do horror de acordar com uma serra elétrica ao lado, o bate-estacas das fundações, e finalmente a sombra tenebrosa do monstro em frente. Sem contar com o movimento de carros na pequena rua onde os prédios antigos não têm garagem.

Álbum de família: a infancia de minhas filhas começou nas adoráveis pracinhas do Jardim Botanico, onde a comunidade de moradores era ativa e se organizava, tanto para festinhas juninas que mobilizavam o bairro todo, quanto para abraçar uma figueira centenária que estava sendo ameaçada pela construtora da hora. Depois construímos nossa casa no Recreio dos Bandeirantes, laboriosamente, como uma família de joões-de-barro, aos pouquinhos, `a medida que entrava cada suado dinheirinho que nossa instável vida de músicos permitia. Pensávamos que era um lugar para a gente envelhecer... Ledo engano. A rua foi tomada por prédios, cujos incorporadores prometiam "a natureza" aos incautos compradores. A água pura de mina que tínhamos na rua foi ficando contaminada pelo excesso de fossas, pois não havia (e ainda não há) saneamento básico na área. Ao fim de quase dez anos, nossa casa era uma das últimas a resistir. Cercados de edifícios por todos os lados, achamos de bom alvitre ir embora.

Seguimos para o Leblon, num charmoso predinho de três andares em forma de navio. A vida no bairro era até bastante agradável, até que um monstro de 27 andares começou a ser erguido `a nossa frente. Para completar, a rua, outrora calma, virou point de bares e restaurantes. Mais uma vez, tivemos que seguir na nossa cruzada em busca de tranqüilidade e silencio, até que achamos nosso lar atual, no Humaitá.

Este sempre foi um bairro considerado de passagem, entre Botafogo e Jardim Botanico _ porém cheio de lugares secretos, ruas sossegadas, subidas íngremes que tiram o fôlego dos possíveis interessados, mas oferecendo aos corajosos visões deslumbrantes lá de cima. Ou melhor, cá de cima, de onde escrevo agora. Ficamos totalmente apaixonados por este lugar, do minuto em que entramos até hoje, dez anos depois. Era o Humaitá Verde, que hoje vemos nas propagandas do mais recente empreendimento, felizmente do outro lado do vale _ mas que certamente não será o último. Nosso bairro está sendo descoberto pela especulação imobiliária, e só Deus sabe até onde ela irá, com sua fome insaciável de lucro.

No outro dia, um taxista comentou com o Tutty, sobre Botafogo: "agora sim, isso aqui está ficando um bairro legal, cheio de prédios, shoppings, Lojas Americanas, hipermercados... vai ficar igualzinho a Madureira!" Ele falava sério, acreditando mesmo no "progresso". Mas quem conheceu o suburbio carioca no tempo em que suas ruas eram cheias de casas simples com cadeiras na calçada, sobrados e varandas, rodas de choro, famílias reunidas, crianças brincando, sabe muito bem a ameaça que essa frase esconde.

PS- a vista da foto acima não é a da nossa casa, e sim do alto do Pão de Açucar, talvez um dos últimos redutos de onde ainda será possível uma visão total do Rio.

8 Comments:

At 9:34 PM, Anonymous Anônimo said...

Olá! Infelizmente é assim mesmo, vamos sendo "encolhidos" e a cidade bela vai sumindo nas mãos daqueles que vendem aos "sonhadores" a beleza de se morar num lugar que aprópria especulação imobiliária vai destruindo. Acho que aqui em Porto Alegre meu bairro segue o mesmo caminho, falei disso no meu blog essa semana também,veja: www.meupianoeomeuteclado.blogspot.com

 
At 9:49 PM, Anonymous Anônimo said...

Aquele abraço para você, bela e doce Joyce... aquele abraço...

 
At 4:24 AM, Anonymous Anônimo said...

infelizmente isto não é um fenômeno apenas do rio, aqui em BH da janela do meu quarto avisto uma parte dos telhados de prado, um bairro que tinha um jeito de cidade do interior, com suas casas, pequenas praças e no máximo pequenos prédios de três andares, e isto vem sendo sufocado por espigões de 13 andares ou mais que vem tomando o lugar das casas, na ultima contagem, da minha janela foram 16 prédios, onde antes só se viam telhados de casas, e não contei os que ainda estavam em construção.

 
At 2:40 PM, Blogger Fernando Neumayer said...

Querida Joyce, comecei a ler seu blog, tem pouco tempo...cheguei aqui através do de Antonio Carlos Miguel, que leio diariamente.
O assunto do humaitá, realmente é verdade, eu como morador desse charmoso bairro, também estou sentindo, a invasão dos prédios, até o ball room tiraram e está subindo um por lá.
Estou gostando de ler seus textos, como um quase-músico-jornalista, me sinto bem.
fernando

 
At 6:46 PM, Blogger Bernardo Barroso Neto said...

Oi Joyce!
Isso que você falou, infelizmnte não é um fenômeno novo.
Desde o fim da década de 70 quando o Tom Jobim fez a Carta do Tom, em resposta a Carta ao Tom, do Toquinho do Vinícius, ele já falava:
"Minha janela não passa de um quadrado, a gente só vê Sérgio Dourado, onde antes se via o Redentor."
Isso só está aumentando, é o homem destruindo tudo o que Deus fez, a paisagem exuberante especialmente no Rio de Janeiro que é uma cidade completamente abençoada por Deus e bonita por natureza, mas até quando?

 
At 10:00 PM, Anonymous Anônimo said...

Ah,querida Joyce!Esses anúncios são totalmente contraditórios com o tal "progresso" que o povo acredita que o Rio esteja sofrendo.E o verde?Nós veremos apenas nas caixinhas de lápis de cor...
Eu espero que no futuro nós possamos ter ainda uma visão total do Rio,da maneira cmo ele é,como ele foi,e da maneira como ele continua tentando ser lindo.
Vc é demais.Parabéns pelo seu trabalho e pelo seu sucesso!!
Beijosss

 
At 1:18 AM, Blogger pituco said...

Joyce,
tema complexo e delicado esse de urbanização de uma cidade.

o dito 'progresso' ou 'reurbanização' é um projeto necessário.

contudo,a 'especulação' e 'ganància' dos interesses comerciais,imobiliários e políticos muitas vezes,ou quase sempre,não respeitam a qualidade de vida não apenas da cidade,mas do planeta.

aí no Rio,onde tb possuo moradia na Barra,ocorreu,exatamente,esse 'crime de lesa polis'(rs!)
havia uma lei urbanística,cujo projeto era de Lúcio Costa,que não permitiam construções acima de quatro andares.Tanto que, os primeiros prédios estão dentro desse padrão.

revogou-se a lei e hoje a orla é um amontoado de espigões e condomínios que não se diferem nada dos aglomerados nos morros...

pergunto: 'alto padrão de moradia,aonde?'.

o maestro Jobim dizia algo como a música era mais vasta porque o Brasil era mais vasto.

amplexosonoros
namaste

 
At 11:14 AM, Anonymous Anônimo said...

Lindo post Joyce.. muitos bairros do Rio tem perdido mesmo o charme com a especulação... vc descreve algo bem smeelhante ao que tem acontecido com meu bairro aqui em Fortaleza (Meireles) a cada dia acordo com britadeiras, shoppings pululando nas esquinas e um movimento tresloucado de carros entre outros infortúnios...

Em tempo: Aguardando ansioso as bodas de vinil Samba Jazz & Outras bossas.

 

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