quem samba, fica
Rola hoje na rede uma grande discussão sobre a intenção do MinC de modificar a atual lei do direito autoral. Fala-se em extinguir o ECAD, em criar dispositivo que permita a licença não-voluntária para o uso de alguma obra que seja de interesse do governo, dando ao Estado poderes para dispor de nossas obras - enfim são inúmeras as modificações para uma lei que, se não é perfeita, vem funcionando ao longo do tempo. O pessoal reclama do ECAD, mas não reclama da Globo, do Canecão, e outros maus pagadores. E nessa há muita gente boa inocentemente caindo na conversa da mudança extemporânea da lei. Tolinhos.
Meu amigo Zé Rodrix dizia que "quem sabe, sabe; quem não sabe, não precisa saber". Como eu acredito que todo o mundo sempre precisa saber, segue abaixo um resumo histórico, para quem quiser ver como as coisas eram aqui no Brasil, na pré-história do Direito Autoral. Quem não quiser saber, pode me deletar agora mesmo.
Antes de o ECAD existir, havia cerca de 10 sociedades autorais que recolhiam - TODAS, ao mesmo tempo - os direitos dos seus autores. Não havia computador, as contas eram feitas na ponta do lápis. Quem pertencesse a uma não podia ter um parceiro de outra - o que explica a grande quantidade de músicas com pseudônimo na época.
Na metade dos anos 70, um grupo de 13 compositores filiados à SICAM pediu para verificar as contas, e foram todos expulsos da sociedade por isso. A classe se uniu em defesa deste grupo, e criou-se a SOMBRÁS, presidida por Tom Jobim e vice-presidida por Herminio Bello de Carvalho. A SOMBRÁS se reunia no MAM e se mantinha com a realização de shows coletivos, no tempo em que fazer show dava algum dinheiro. Como estávamos em plena ditadura militar, tínhamos ainda que lidar com a questão da censura, que não era brincadeira. Os tempos não estavam nada fáceis para quem queria ser compositor.
Mas uma incipiente abertura política já se iniciava no Brasil. Uma comissão de compositores foi a Brasília conversar com então o ministro da Educação (não havia na época a separação entre os ministérios de Educação e Cultura), e desta reunião surgiu a centralização da arrecadação através do ECAD e a criação do CNDA (Conselho Nacional do Direito Autoral), que seria um órgão fiscalizador e normativo. As sociedades autorais chiaram muito com isso, pois tinham perdido sua função. E conseguiram, anos depois, voltar ao funcionamento, como repassadoras dos direitos arrecadados.
(Pela minha experiência pessoal funcionava muito melhor quando só o ECAD recolhia e distribuía os direitos. Passamos a ter mais um 'sócio' na corrente, totalmente desnecessário, na minha opinião - mas já que existia, tive de me associar a uma dessas sociedades. Escolhi a que me pareceu mais profissional, pois é disso que se trata: profissionalismo)
Entre os anos 1985 e 1986, fui convidada e aceitei fazer parte do CNDA. Fiz isso para cumprir o que eu considerava uma espécie de 'dever cívico'. Eu me sentia em dívida com o CNDA, que, a partir de uma reclamação e um processo meus, me ajudara a recuperar quase todo o meu repertório preso a uma editora multinacional (aqueles contratos 'forever' que a gente assinava antigamente). Tendo recuperado minha obra de até então, pude em 1980 abrir minha própria editora, que ficou sendo a segunda editora de autor no Brasil (a primeira foi a Três Pontas, de Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Marcio Borges). A Feminina Edições Musicais existe até hoje, custa caro para manter, mas minha obra é minha e ninguém tasca. Graças a Deus.
Enfim, topei fazer parte do quadro de compositores do CNDA, junto com Mauricio Tapajós, Gonzaguinha, Capinam e Fernando Brant. Os outros membros eram, na maior parte, advogados, alguns simpáticos à nossa causa, como Pedrylvio Guimarães e Hildebrando Pontes, outros trabalhando para grandes gravadoras. Isso significava ir uma vez por mês a Brasília, e lá discutir processos ligados aos titulares de direitos, muitas vezes trazendo estes processos para casa e, com a ajuda do excelente departamento jurídico do CNDA, formular nossos pareceres. Era um trabalhão, não remunerado, diga-se de passagem. Recebíamos um pro-labore que quase dava para pagar hotel e refeições. Mas foi uma experiência interessante. Eu, pelo menos, aprendi muito nesses tempos. E esse aprendizado me fez ficar mais esperta para lidar com minha própria obra.
Conto tudo isso para dar uma ideia do que acontecia antes e logo depois da criação do ECAD. O ECAD que é conquista nossa, e portanto, problema nosso também. Se há alguém que possa e deva corrigir os seus erros, somos nós, compositores.
Basta olhar em volta e ver o que está acontecendo no continente para pressentir por que, de uma hora para outra, o direito autoral passou a interessar tanto às altas esferas governamentais. Isso sim, me dá arrepios.
9 Comments:
todas as conquistas dependem de muita luta e determinação... se isso há de sobra, então a causa já está ganha! só vai dar um pouco de aborrecimento, dor de cabeça... mas se a classe souber lutar, não vai sair perdendo direito algum.
se amolecerem, os compositores, cantores e músicos vão acabar passando fome e morando na periferia em baixo de "marquises"!!
quase não se compra os trabalhos pois baixar música na internet é fato... se perder mais essa vai ficar complicado.
arregaçar as mangas e força aí, todos juntos!
olha joyce
parece-me q este processo de arrecadação do Direito Autoral deveria estar longe das mãos do Estado e , sim, nas mãos de orgãos independentes q atuassem visando os direitos do unico personagem desta questão, o Autor (a Autora).
porem, no Brasil tudo tem um atrelamento muito complicado com o Estado. é realmente lamentável.
porém não se deve desistir do ideal.
minha pergunta fica qto ao papel da Biblioteca Nacional, é apenas um arquivo de registros? é ligada ao Ecad?
abs
paul
joyce, eu acho que ou você não entendeu ou está se fazendo de desentendida: na proposta de revisão da lei de direito autoral feita pelo ministério da cultura NÃO consta a extinção do ECAD, mas apenas a supervisão dessa instituição para que ela seja mais transparente nas suas arrecadações e, principalmente, na distribuição do que arrecada.
Daniela, eu nem desentendi nem me fiz de desentendida. Talvez você tenha deixado passar uma coisa importante. O texto do MinC fala claramente que "A proposta permitirá que novas entidades de arrecadação e distribuição de direitos autorais sejam criadas". Isso É extinguir (ou, no mínimo, enfraquecer) o ECAD, substituindo uma instituição privada por uma (ou mais) pública. Leia a lei. Veja no meu post publicado dia 18 de abril as considerações do Antonio Adolfo sobre a mudança proposta na lei.
Paul, a Biblioteca Nacional é órgão governamental ligado ao ministério da Educação (ou da Cultura, não estou certa) e nada tem a ver com o ECAD. É como a National Library aí nos USA, que não tem nada a ver com Ascap ou BMI. O ECAD não é do governo, é dos autores. Infelizmente, estamos falhando em administrá-lo, mas os erros são nossos e de mais ninguém.
Joyce, acho então que vc pulou essa parte aqui do texto em consulta:
Capítulo II Art. 99. As associações que reúnam titulares de direitos sobre as obras musicais, literomusicais e fonogramas manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à sua execução pública, observado o disposto no art. 99-A. (7 Propostas)
E também:
§ 4o O escritório central poderá manter fiscais, aos quais é vedado receber do usuário numerário a qualquer título. (3 Propostas)
E ainda:
Art. 105. A emissão, a transmissão e a retransmissão, por qualquer meio ou processo, e a comunicação ao público de obras artísticas, literárias e científicas, de interpretações e de fonogramas, realizadas mediante violação aos direitos de seus titulares, poderão ser imediatamente suspensas ou interrompidas pela autoridade judicial competente, sem prejuízo da multa diária pelo descumprimento e das demais indenizações cabíveis, independentemente das sanções penais aplicáveis; caso se comprove que o infrator é reincidente na violação aos direitos dos titulares de direitos de autor e conexos, o valor da multa poderá ser aumentado até o dobro. (2 Propostas)
E tem tb o seguinte: acho que se o ECAD realmente cumpre com o seu papel, não será de interesse dos autores criar uma outra entidade arrecadadora, não?
A proposta não quer acabar com o ECAD, ao contrário, reconhece seu papel fundamental na gestão de direitos dos autores e titulares de direitos autorais, no que tange tanto à arrecadação quanto à distribuição. O modelo centralizado é o mais racional e benéfico para autores e usuários. Além disso, estimula que outros setores se organizem (como os do livro e do audiovisual) para fazerem suas gestões coletivas, de forma a também beneficiarem os respectivos autores e titulares de direitos autorais.
Em nenhum local do projeto existe a proposta de criação de uma entidade pública arrecadadora. O projeto não propõe que o Estado fique responsável pela cobrança e distribuição dos direitos autorais – atividade que é, e acreditamos que sempre assim deva ser, tipicamente privada -, nem defende a intervenção do Estado no livre direito de associação.
O que está sendo proposto (e está aberto a contribuições) é que as entidades privadas de gestão coletiva que queiram arrecadar e distribuir recursos relativos a direitos autorais façam isso seguindo os princípios de transparência, eficiência, representatividade e publicidade. O ECAD hoje é um monopólio dado por lei sem que haja qualquer tipo de regulação sobre a sua atividade, seja diretamente através de um órgão regulador, seja por meio de defesa da concorrência. Isso é caso único entre os 20 maiores mercados de música no mundo.
A imensa maioria dos países do mundo conta com uma instância supervisora das entidades arrecadadoras e de distribuição de direitos autorais, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário. O Estado faz-se presente, seja como garantidor, seja como supervisor ou regulador de uma série de atividades normais e cotidianas da economia e da vida do cidadão, por que essa outra atividade deve permanecer incólume ao interesse público?
Pela proposta, o Estado estará legitimando a atividade das entidades de gestão coletiva e garantindo maior controle da sociedade sobre suas atividades.
(Resposta no site da consulta do MinC)
Tem ficar ligado, senão textos como esse podem confundir ainda mais as pessoas levando em conta que o assunto é super complexo. Abraços!
A questão é até simples.
O Governo tenta se aproveitar dos interesses adversos entre grupos de autores para levar de mão grande mais um direito do cidadão e estabelecer outro parâmetro bolchevista de controle estatal sobre a liberdade de expressão e congêneres. Como isca, oferece apoio em alguns avanços que, apesar de importantes, prescindem totalmente da ajuda de qualquer Komintern para que sejam implementados.
O ECAD é sim um órgão espetacular e uma solução brilhante de arrecadação e distribuição de direitos autorais. Seria um absurdo de atraso extinguí-lo e tentar refazer sua complexa máquina física e jurídica de arrecadação e distribuição. Um novo órgão, saindo do zero, levaria dezenas de anos para chegar ao mesmo ponto. Precisa sim ser modernizado, mas principalmente necessita de uma administração transparente e auditada de forma independente. É essencial que seja confiável.
As sociedades arrecadadoras devem ser simplesmente extintas.
E nada mais, como diria Zé Rodrix.
- Guarabyra
Boa, Gut.
Os compositores profissionais - os que vivem do que tecem - sabem aonde o sapato aperta.
Cara Joyce e leitores do blog,
o Ministério da Cultura quer reiterar que a proposta de revisão da Lei de Direitos Autorais não propõe a extinção do ECAD, nem pretende enfraquecê-lo, como explica o texto que produzimos para esclarecer tal interpretação e que já foi publicado acima por uma visitante do blog. (http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/?pid=1394)
Abaixo, texto que consta na proposta (aberta a contribuições):
Capítulo II Art. 99. As associações que reúnam titulares de direitos sobre as obras musicais, literomusicais e fonogramas manterão um único escritório central para a arrecadação e distribuição, em comum, dos direitos relativos à sua execução pública, observado o disposto no art. 99-A.
O que a proposta busca estimular é que outros setores se organizem (como os de livro e de audiovisual) para fazerem suas gestões coletivas, de forma a também beneficiarem os respectivos autores e titulares de direitos autorais.
Entendemos que o modelo centralizado de arrecadação, que reúne diversas associações de titulares, é o mais racional e o que traz melhor resultados tanto para autores, quanto para usuários. Além disso, é o modelo mais adotado no mundo. Só que no Brasil não há nenhuma supervisão pública sobre a atuação do ECAD, ao contrário do que acontece em quase todo o mundo.
Ver aqui tabelas que comprovam isso: http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/2010/06/21/brasil-e-caso-raro-no-mundo/).
A questão que se coloca está relacionada ao fato de que a atividade exercida pelo ECAD é definida por Lei como um monopólio e essa mesma Lei que o cria não estabelece regulação desta atividade. A existência desse monopólio demonstra o reconhecimento do Estado da importância desse setor econômico para a arte e a cultura, e demanda - devido a esse mesmo reconhecimento - supervisão do Estado para que os propósitos originários da concessão da exclusividade dessa atividade sejam de fato atingidos: a justa remuneração ao autor e artista intérprete e outros titulares de direitos pela execução pública de suas obras. Mais: é preciso garantir transparência a esse processo.
Na Lei de 1973 o Conselho Nacional de Direitos Autorais – CNDA – detinha um poder supervisor da gestão coletiva, mas o órgão foi extinto pela Lei atualmente em vigor. Cabia também ao CNDA a mediação de conflitos, que o anteprojeto busca reestabelecer. Trata-se de um serviço facultado aos interessados, nos moldes do que fazem hoje os Procons, e que não é vinculante, ou seja, caso alguma das partes não concorde com o resultado poderá recorrer normalmente à justiça.
Sobre a Biblioteca Nacional, ela continua sendo responsável pelo registro de obras literárias. O que o projeto de revisão propõe é que todos os serviços de registros sejam organizados pelo Ministério da Cultura (e não necessariamente executados por ele), de forma a ser possível a elaboração de uma política de registro no país e a criação de uma consistente base de dados de obras protegidas.
Daniel Merli
Coordenador de Comunicação Social do Ministério da Cultura
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