sábado, outubro 18, 2008

o piano

Peço aqui emprestada essa imagem do nosso amigo (e atual pianista regular da minha banda) Hélio Alves para falar não dele, mas do instrumento que ele tem nas mãos. Durante os 12 anos em que temos morado aqui, nesta paradisíaca ladeira no alto Humaitá, nossas vidas foram alegradas pelo som de um piano. Não um piano profissional, um brilhante piano de jazz como o do Hélio ou um piano clássico tipo Nelson Freire, tocado por algum concertista que vivesse nas redondezas. Não. Era um piano bem simples, amador, discreto, tocado por uma senhorinha de certa idade que morava em frente.

Numa mega-cidade como é o Rio de Janeiro a gente se acostuma a não incomodar os vizinhos. E o não incomodar muitas vezes inclui o não conhecer. Nós cariocas somos assim, marcamos uma visita que jamais faremos _ 'me liga', 'passa lá em casa', tudo mentira, não iremos ligar e esperamos que o outro jamais apareça _ criamos uma imagem de cordialidade que na verdade não existe, porque não queremos incomodar nem ser incomodados (principalmente a última alternativa). Quando eu era pequena, havia um sucesso de Ivon Curi chamado 'Delicadeza', que dizia exatamente isso, e já naquela época. O coro cantava e ele comentava baixinho: "Encantado... (que nada!)/ é um prazer conhecê-lo (cruzes!)/ como passou, como vai? na certa voltarei a vê-lo (Deus me livre!)/ sou fulano de tal, moro na rua tal, apareça... (nunca!)" Também tive uma amiga querida, bastante franca, que dizia: "já conheço gente demais, não quero conhecer mais ninguém". E ficava em casa para não ter que conhecer mais nenhum estranho. Tudo isso me veio `a mente por causa do piano.

Ontem, ao ver o caminhão da Lusitana levando a mudança, é que me dei conta de que em algum ponto destes 12 anos algum de nós poderia ter se dirigido a ela e lhe dito o quanto seu piano era apreciado. O repertório era variado _ Mozart, Chiquinha Gonzaga, alguns tangos _ e muitas vezes ela ficava apenas praticando as escalas. Quando havia festa na casa, aí sim, o piano era tocado con brio por ela mesma e por algumas visitas. Mas durante a semana ela tocava seu repertório de sempre, simplezinho e delicioso. Até meu neto adolescente, geração mp3 e youtube, se entristeceu com a noticia de que não teríamos mais aquele som familiar alegrando nossas tardes.

Tomara que nada de grave tenha provocado a mudança e que nossa ex-vizinha possa continuar a alegrar outras casas com sua música. Que seus futuros vizinhos possam apreciar essa música tanto quanto a gente. E, principalmente, que digam isso a ela, como nós poderíamos ter dito e não dissemos.

4 Comments:

At 12:43 PM, Anonymous Anônimo said...

A verdadeira delicadeza está nessa sua crônica comovente.

Parabéns, Joyce.

 
At 1:25 PM, Blogger JoFlavio said...

O bêbado providencial...

Conhecido mundialmente mais como um “ballad singer”, Nathaniel Adams Cole (Nat) foi um dos grandes pianistas de jazz da história. Deixou uma escola com vários seguidores hoje famosos. E diz a lenda que foi um bêbado o responsável pela virada na vida artística de Nat que, apenas como pianista, vivia nos bares próximos a San Francisco, sempre com uma clássica formação de trio. Aliás dizem que ele “inventou” o trio no jazz. Pois bem. Naquela época, Nat tinha no repertório um infalível tema chamado Sweet Lorraine (Burwell & Parish, 1928). Determinada noite um sujeito completamente alcoolizado foi ao Nat e pediu para que ele também cantasse a música. Claro, Nat nem deu bola. Mas o bêbado tinha poderes e ameaçou o proprietário da casa, exigindo dele uma ordem para Nat atender seu pedido. Com medo de perder o emprego – o bêbado praticamente sustentava o bar -, Nat acabou cantando. Ao terminar, um silêncio estranho. Em seguida, aplausos ininterruptos. E assim nasceu o “cantor” Nat, depois King, Cole. Nunca se soube da identidade do bêbado e sua ocupação.

PS. Hélio Alves é confesso admirador de Herbie Hancock (maior influência) que, por sua vez, quando criança, adorava Oscar Peterson. E Peterson, nunca negou, tinha em Nat um de seus maiores ídolos.

PS II. Por causa de seu estilo (altamente influenciado por Nat Cole), Cesar Mariano, apesar de ter na época somente quinze anos, foi contratado para fazer o "dublê" de Nat, em comerciais na TV Record ao vivo, das chamadas dos shows. Para uma aparição mais convincente, Cesar teve suas mãos e braços escurecidos. Quando assistiu aos comerciais na TV, Mr. Cole ficou muito impressionado com a performance daquele menino e o convidou para um de seus shows. Cesar, mesmo acompanhado de seu pai, foi barrado por ser menor de idade e nunca mais teve a chance de encontrá-lo.

PS III. Diana Krall, outra discípula de Nat, está no Rio para gravar clips apara o seu novo CD. Um dos locais escolhidos foi o "Cais do Oriente", linda casa do meu amigo Marcos Resende, aliás outro pianista de mãos cheias.

 
At 3:06 PM, Blogger Cristiane Figueirêdo said...

São hábitos de cidade grande e/ou cidade de clima frio...Ao memso tempo estranho, porque parece q a classe média é pequena em qq lugar.

Abs a tds Criss

 
At 7:37 PM, Blogger Luiz Antonio said...

Esse negócio de blog é um pouco disso. Tô te visitando agora, entrando um pouco nesse teu mundo público/privado que abres aos visitantes que quiserem chegar. Uma visita fácil, sem hora marcada, sem cerimônias, sem precisar entrar, sentar e tomar um cafézinho. Mas que fica registrado nos comentários, que por aqui passei e até deixei uma opinião sobre o assunto do dia.
Um blog sem comentários, sem marcador de visista rodando, pra mim é como uma porta de um vizinho que não visitamos: sabemos que ele tá lá, até ouvimos (lemos) o que ele tem a dizer,mas não chegamos até que um dia o caminhão de mudança para na porta, o blog para de ser atualizado... E lá se vai mais um dia. Sinto falta de todos que me ouvem ou lêem e não batem a minha porta, ainda que ela seja um a porta virtual.
Luiz Antonio, melancólico, a espera de sua visita, um dia.

 

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