terça-feira, novembro 17, 2009

na casa do Villa

Parece um Groucho Marx sem o bigode, mas é Heitor Villa-Lobos, irreverente como todo carioca - nosso pai/avô , morto há 50 anos, em 1959 - mesmo ano em que João Gilberto lançava seu primeiro disco, 'Chega de Saudade'. Rei morto, rei posto. Isso não é mera coincidência.

Na foto, nosso Villa demonstra o método chamado 'manossolfa', que nós, crianças dos anos 50, ainda aprendemos nas aulas de canto orfeônico. Cada sinal desses representava uma nota musical. Era uma forma de ensinar solfejo. No Colégio São Paulo, em Ipanema, onde estudei, um padre nos ensinava este método, largamente difundido na década anterior. Uma vez, numa entrevista para uma hoje falecida revista dirigida por Ziraldo, perguntei a Dori Caymmi (também irreverente como todo carioca, etc, etc...) se ele não achava que toda nossa geração de músicos existia graças ao Villa. E ele me respondeu, bem ao seu jeito: "esse negócio de dedo não é comigo". Mas a verdade é que aprendemos com o Villa, sim, e isso não dá para negar.

É famosa a história que o Tom contava sobre sua primeira visita à casa de seu ídolo, mas aqui a repito para os mais novos. Villa morava no centro do Rio, na rua Araújo Porto Alegre, local barulhento onde passavam bondes, ônibus, automóveis, muita gente na rua. E dentro de casa, o som ligado na novela da Rádio Nacional. Tudo ao mesmo tempo acontecendo, e ele imperturbável, sentado no chão, escrevendo suas partituras. Tom, impressionado, perguntara: "Maestro, como o senhor consegue?" - ao que Villa teria respondido: "meu filho, o ouvido de dentro não tem nada a ver com o ouvido de fora".

Num dia especialmente tumultuado aqui em casa, fiz esta música para os dois e também para o Vinicius - todos mestres em usar o ouvido de dentro como maior referencia. Ela está no meu CD 'Gafieira Moderna', de 2001:

                                      NA CASA DO VILLA

Na casa do Villa era uma zona 
Diz a lenda, com razão
Com rádio, com novela e com vitrola 
Atrapalhando a criação
Nem por isso o digno maestro alguma vez se perturbou
O ouvido de dentro é o que importa
Isso foi ele que ensinou

Na casa do Vina era uma festa
Como na casa do Tom
Com música, parceiros, namoradas
Desde a Gávea até o Leblon
Nem por isso o mestre ou o poeta desistiam das canções
O ouvido de dentro é o que importa
Nisso é que eles eram bons

Hoje em minha casa tem criança
Cachorro e televisão
Tem gente aqui chegando de viagem
Também tem gente que não
Nem por isso a música me larga 
Triste, sem inspiração
O ouvido de dentro é o que importa
Então eu fiz esta canção

15 Comments:

At 9:37 AM, Anonymous Sérgio Santos said...

Joyce querida.
Acho essa música uma perfeição, um achado. Eu trocaria umas 20 músicas minhas à sua escolha por essa daí. Topas?

 
At 12:34 PM, Blogger rogerio santos said...

Joyce, justa homenagem, deliciosa história, postagem mais-que-perfeita lembrando o Maestro.
Quando a música se funde com a alma, não há som que atrapalhe a criação.
O Gafieira Moderna é uma delícia de disco. Está entre os meus favoritos.

Falando de grandes mestres, vale citar a passagem do Paulinho da Viola em Dança da Solidão:

"Meu pai sempre me dizia :
Meu filho tome cuidado,
Quando eu penso no futuro não esqueço meu passado"

Acho que é assim que se deve caminhar
.
Beijos, Rogerio.

 
At 3:44 PM, Blogger Luiz Antonio said...

Olha, compor acho até que pode dar pé, mas ouvir depois... Daí vamos pro IPOD para suturar o ouvido de fora...resultado: zumbis circulando pela casa, acusados de sermos alienados ao louvado e bendito caos familiar (criança, cachorro e televisão - e não esqueça da terrivel máquina de lavar, do liquidificador, da tv de plasma com som dolby sorround digital de mil canais...) O barulho da década de 50 ainda era ACUSTICO!

 
At 4:57 PM, Anonymous Anônimo said...

Cada vez entendo mais as afinidades.
O teu trabalho sempre me encantou como o do Villa que, incrivelmente, conheci depois do teu.
Há algum tempo eu afirmava para amigos(sou mais taxativo), que toda grande música brasileira de alguma forma vem de Villa-Lobos.
Não falo de plágio evidentemente, nem de acordes ou ritmos, mas de postura, de sofisticação, de independência, de altivez, de originalidade, de sadia arrogância, de sensibilidade ...

 
At 7:10 PM, Blogger Rafaela Gomes Figueiredo said...

gafieira: tenho: adoro! =)

esses gênios/mestres/ímpares... têm sempre dessas coisas um tanto metafísicas, né? tipo essas frases soltas, jogadas ao ar, para quem passar, ouvir e/ou quiser segurar na cordinha e deixar-se levar pr'além do comum em q se vive...

adorei!

beso

 
At 11:23 PM, Blogger Paul Constantinides said...

joyce
esta sua musica eh um doce e toca bastante no meu Ipod...
o legal eh q no blog do pituco tbm esta comemorando os 50 anos da passagem do Vila e o interessante eh q aqui, em Miami, tbm vai ter um concerto em homenagem ao grande compositor com o maestro Luiz Fernando Malheiro, o piano de Simone Leitao, a tenora Edna d'Oliveira e a orquestra sinfonica de Miami...muito legal ver esta data comemorada aqui...no meu blog nao pintou nada a respeito...mas agora vi q hoje postei o disco do Luiz Essa com o Quinteto Vila Lobos..not bad at all... :-)
conexoes musicais
beleza pura
abs
paul

 
At 6:06 AM, Blogger pituco said...

mrs.joyce moreno,

piramidal ao cubo...rs

teu post, o maestro villa lobos, tua música...e por tudo isso, ainda ter orgulho de se ser cidadão de uma nação idealizada por pessoas como vocês...obrigado

postei homenagem lá em meu blog também, inclusive com música no podcast e dica pra cá, ok?

abraçsons pacíficos e emocionados
teu fã

 
At 2:45 PM, Blogger JoFlavio said...

J
Pode ser impressão minha. Mas acho que a influência da música do Heitor no trabalho do Jobim só veio mesmo mais tarde, via Matita Perê, também inspirado em Mario Palmerio, e Urubu. No inicio, o Tom era mais chegado aos impressionistas, como Debussy, Ravel, etc. Sem contar os americanos Gershwin, Rodgers, Kern. Seré que essa minha impressão é correta?

 
At 8:46 PM, Blogger joyce said...

JoFlavio, a tese é boa e musicalmente faz sentido. Mas historicamente, se o Tom já ia visitar o Villa antes de ele mesmo, Tom Jobim, existir como tal (ou seja, recém-pós-Orfeu da Conceição, mas ainda pré- bossa-nova) significa que o Villa já era uma forte presença, que só bem mais tarde ele deixou que aparecesse em sua música. O filho só reconhece publicamente o pai depois que já se estabeleceu... :-)

 
At 9:35 AM, Blogger joyce said...

Serjão, um bom negócio desses não se perde...

Se fosse antigamente, quando samba era que nem passarinho, como dizia Donga ("é de quem pegar primeiro") você estaria em maus lençóis... Eu toparia essa troca, e ficaria, por exemplo, com o repertório completo do 'Áfrico' e o do 'Iô Sô'. Não precisava nem recibo...

 
At 11:12 AM, Blogger rogerio santos said...

O Áfrico é um "marco" na MPB. Kekerekê e Gongá, eu até gastei de tanto ouvir...rs
Espetacular !

 
At 9:44 PM, Anonymous Sergio Santos said...

Joyce e Rogério.
Existem algumas poucas músicas de outros compositores que, por um misterioso motivo, eu gostaria de ter feito. É uma identificação pessoal, uma afinidade qualquer, que não consigo identificar bem. Na Casa do Villa é para mim uma música assim: ela tem umas descobertas melódicas e harmônicas que me levam imediatamente a perguntar: caramba, mas por que não fui eu que descobri isso? São detalhes que estariam a meu alcance, ali, esperando, mas quem descobriu foi você. E isso não se relaciona com ser a música sua que eu mais goste. Ela talvez não seja a sua música que eu mais gosto, mas se você quisesse trocar alguma comigo, naquela base do 1/20, eu fechava o olho e não teria dúvida em escolher essa. E ainda te dava uma meia dúzia de troco. Interessante isso né? Quer ver outra assim? Três Curumins, do Dori. Outras: Corrupião do Edu, Eu vim da Bahia do Gil, Choro das Águas, do Ivan. E é bom parar por aqui, porque senão acaba o meu repertório, não vou ter mais nada pra trocar. Pensando bem, isso pode ser um ponto de partida pra pensar naquele disco de intérprete que você diz que eu tenho que fazer, hehe.
Um beijo e saudades.

Rogério, não sacaneia, senão eu fico sem argumento...

 
At 10:14 PM, Blogger Bernardo Barroso Neto said...

Salve o maestro Villa!
Ser mestre do Tom Jobim não é pra qualquer um, essa música sua realmente é maravilhosa. Tenho esse disco Gafieira moderna, é todo sensacional.
Parabéns pela homenagem ao grande Villa-Lobos, sem ele não existiria música popular moderna no Brasil, talvez sem ele nem exisitisse Tom Jobim.
Beijos!

 
At 1:19 PM, Blogger Érico Cordeiro said...

Joyce,
Dizer que Villa-Lobos é um dos maiores orgulhos nacionais, que era inventivo sem se esquecer da tradição popular das velhas contigas de roda, que sua música era sofisticada mas com um pé bem assentado nas rodas de choro que ele freqüentava desde sempre, é meio chover no molhado.
Ele foi tudo isso, decerto.
Mas também foi um desbravador de caminhos para a música popular e uma influência direta em tudo o que se fez de bom em nossa música (até os tropicalistas, talvez o movimento musical mais iconoclasta dos anos 60, bebeu naquela fonte - o que prova que Caetano e Cia. não eram lá tãããããão iconoclastas).
Tom Jobim, Dori, Edu, são todos herdeiros espirituais de Villa Lobes.
Sem ele, a nossa música erudita seria uma notinha de rodapé no grande livro da música clássica e a nossa música popular seria consideravelmente mais pobre.
Abraços fraternos!!!!
PS.: Tudo bem que já me acostumei com a idéia de que você é "a" Joyce. Mas esse que comentou primeiro é "o" Sérgio Santos?
Como é que eu faço prá conseguir um autógrafo de vocês? (rs, rs, rs).

 
At 1:59 PM, Anonymous Anônimo said...

Joyce, esta música tem uma letra muito especial. Aqui no Brasil, muitos lutam para que o povo não conheça seu passado. Porém, nesta obra você nos faz lembrar de uma curiosa história da música de nosso país.

 

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