No Comício das Diretas
10 de abril de 1984, Candelária, RJ. Dia do histórico comício pelas eleições diretas, que reuniu um milhão de pessoas nas ruas do Rio. Outros já haviam acontecido e ainda iriam acontecer pelo Brasil todo, pedindo a aprovação da emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas para presidente do Brasil. Como se sabe, foi em vão: estas só iriam vingar em 1989. Mas ainda não sabíamos disso.
Sempre fui refratária a participar de comícios pagos em época de eleições, ao contrário de tantos colegas meus, que ganharam muito dinheiro com isso (alguns ainda ganham...) Mas comícios de graça, em torno de uma idéia, desses participei muitíssimo, mesmo em situações de risco, como aconteceu algumas vezes nos anos de chumbo da ditadura militar. Portanto, quem me convidou para participar do grande comício das Diretas em 1984 sabia o que estava fazendo. Quem não sabia era eu, ai de mim...
(As fotos acima mostram o Dragão das Diretas, criação do artista plástico Alex Chacon, que havia sido largamente exibido em Brasília, quando houve a manifestação por lá. Era uma escultura de papel machê, de grande porte, 'vestida' por diversos manifestantes que rodopiavam pela praça dos Três Poderes. E que causara grande incômodo às autoridades militares de plantão. Foi resolvido que o Dragão viria para a manifestação do Rio. Alguns amigos meus se reuniram com o pessoal que trazia este original artefato, e dessa reunião saiu uma marchinha da 'Turma do Dragão', que meu amigo Fernando Leporace me mostrou na véspera do comício e me fez dar boas gargalhadas.)
No dia do comício, fui para o ponto de encontro dos artistas participantes, que seria no Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo. Dali sairíamos num ônibus, diretamente para o palco/palanque armado na Candelária. No camarim improvisado, entre artistas e políticos, acabei conversando bastante com Dona Mora, esposa de Ulysses Guimarães, uma simpaticíssima senhora, que me confidenciou o quanto era difícil lidar com o estresse do marido quando este chegava em casa, depois de seus longos embates em Brasília. Compreendi e me solidarizei imediatamente com ela, pois não devia mesmo ser fácil enfrentar aquilo tudo. Veio o ônibus e seguimos para o palanque.
Eu, como sempre na vida, estava improvisando: não tinha a mínima idéia do que iria fazer quando chegasse lá. Não havia a menor infraestrutura para show. Praticamente ninguém levara algum instrumento, pois a idéia era mais demonstrar apoio que qualquer outra coisa. Alguns colegas mais espertos e tarimbados neste tipo de comício, como Milton Nascimento e Beth Carvalho, levaram play-backs de seus sucessos, e assim se apresentaram no palanque, para delírio da platéia de um milhão de pessoas. O que fazer?
A última artista a se apresentar antes de mim foi Olivia Byington, que com sua voz de sopraníssimo, cantou, a capella, o Hino da Independência: "ou ficar a pátria livre/ ou morrer pelo Brasil" Era um momento histórico, solene, de grande seriedade e importância. Era preciso estar à altura de tamanha responsabilidade.
Ou não?
Quando fui chamada ao microfone, olhei para o lado e vi Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Tancredo Neves, o venerável dr. Sobral Pinto, todos ali assistindo. À minha frente, aquele mar de gente. A idéia mais óbvia, para mim, seria protagonizar um "momento fofo" no comício: eu poderia facilmente cantar "Clareana" a capella também (o público certamente me acompanharia), e em seguida dizer que esperava um Brasil democrático para minhas filhas. Seria lindo e Dona Mora sem dúvida aprovaria. O público ficaria com lágrimas nos olhos. Minha mãe em casa se orgulharia de mim.
Mas um pensamento rápido me veio. Essa não sou eu. E, bom, o negócio aqui está ficando sério demais. Um pouco de esculhambação não faria mal a ninguém... Lembrei da marchinha que meu amigo Lepô me ensinara na véspera, e falei para o público sobre o Dragão das Diretas, "que deve estar por aí em algum lugar". Em seguida, mandei a marchinha:
"A Turma do Dragão/ cospe fogo na inflação/ corre, Dragão, pega o ladrão/que não quer saber de eleição"
Já estava indo mal... Mas podia ficar pior. Emendei na segunda parte:
"Apoteose/ seria o Delfim com cirrose.../ (...) Corre, Dragão. pega o ladrão/ que agora é hora de eleição... Diretas já! Diretas já!"
Pelo menos no refrão final o público me acompanhou. Ao lado, no palanque, Dona Mora me olhava, horrorizada. A maioria dos políticos também (julguei ter visto um esboço de sorriso na cara de Tancredo Neves). Agora era tarde, a besteira cívica já estava feita. No dia seguinte, várias pessoas me ligaram perguntando se eu tinha enlouquecido. A Globo transmitira ao vivo, exatamente na minha parte...
No ano seguinte, 1985, fui a Moscou me apresentar no Festival da Juventude. Lá, numa delegação composta por jovens futuros políticos, havia um garoto de 20 e poucos anos, Aécio Neves, neto de Tancredo. A primeira coisa que ele me disse, ao sermos apresentados, foi: "meu avô gostava muito de você". Bom, então pelo menos alguém tinha achado graça na minha brincadeira... Sorry, Dona Mora!