quarta-feira, outubro 24, 2007

a bossa agora é australiana!

Não foi por falta de aviso. É tanto o descaso com nossos bens culturais que, claro, algum espertinho registrou a marca 'bossa-nova'...na Austrália! A marca 'samba' também já teve seu registro pedido em outros países. Aguardemos para breve o choro, o forró e outros generos.

(Na foto, estou participando do concerto em homenagem a meu parceiro Carlos Lyra, quando ele recebeu o Premio Shell em 2005 _ ele que é a mais completa tradução da bossa-nova e de um Rio de Janeiro mais gentil.)

A picaretagem não vai só por aí. Ontem mesmo, em visita a minha nova sociedade autoral, encontrei vários créditos retidos em nome de Tom e Joyce (faixa 'Vai Minha Tristeza remix'), ao que fui obrigada a explicar que não, não somos eu e o Tom, e sim uma dupla de picaretas franceses fazendo-se passar por nós. E nem a música é 'Chega de Saudade' e sim um pavoroso melê em português tarzânico com aqueles ruídos eletronicos em volta. A má-fé é tamanha que sequer existe foto dos supostos Tom e Joyce na capa do CD. São artistas fantasmas, acintosamente enganando os incautos.

Mas não queria falar deste caso pessoal, que afinal só prejudica (pouco) a mim e `a família do Tom, além dos eventuais compradores desta bomba (esses, os maiores prejudicados, levando gato por lebre). Quero falar do Brasil que deixa acontecer coisas como esse absurdo registro de uma marca que é 100% brasileira _ como o nosso amazonico cupuaçu, que também foi registrado pelos japoneses. Quer dizer que terei de pedir licença aos australianos se por acaso quiser cantar bossa-nova na terra deles, ou quiçá em minha própria terra, pois não se sabe a extensão do registro? Como permitimos isso?

Se a bossa-nova já tivesse sido tombada como bem imaterial da humanidade, como a Bahia se apressou a conseguir para o samba de roda do Recôncavo Baiano, talvez isso pudesse ser evitado. Mas samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro, já dizia Donga (ou terá sido Sinhô?) Portanto... perdeu, playboy.


quinta-feira, outubro 18, 2007

canção do exílio

Abro este post com a imagem do meu queridíssimo amigo, mestre e parceiro Dori Caymmi porque ele simboliza melhor do que ninguém o que quero dizer hoje aqui. Dori é um adorável rabugento, seu mau-humor é folclórico, e quando abre a boca pra falar, sai de baixo (não é o único Caymmi que tem esta característica, registre-se). Nem tudo o que ele diz se escreve, mas ele não economiza nem alivia. O Brasil e suas mazelas são seu prato predileto, e ele diz o que pensa _ assim, na lata. Já soube de gente que saiu na metade de algum show dele, ofendida com seus comentários sobre o nosso país, ou sobre o Rio, ou sobre a Bahia _ que são os lugares que ele mais ama, e portanto fica `a vontade para espinafrar quando acha algo de errado.

Dori vive há 18 anos na California, mora bem, vive bem, mas sonha e chora com o Brasil. Sua música é toda feita para o Brasil, moldada na grande tradição da canção brasileira, porém dando um passo `a frente nas harmonias, na construção melódica, nas estruturas. Como também fez o Baden, um de seus mestres do violão, que a certa altura da vida, pressionado pelas dificuldades de trabalho encontradas aqui, foi viver na Europa, onde tinha status de grande estrela. Quem duvidar, procure na web ou leia a biografia dele, "O Violão Vadio de Baden Powell", escrita pela jornalista francesa Dominique Dreyfus.

Por que estou dizendo tudo isso? Porque senti nos comentários ao meu post anterior, ainda que poucos, uma certa incompreensão com relação a esta questão de 'sucesso no exterior' _ e eu que não queria mais falar nisso... Confesso que achei graça na história contada por Luiz Antonio, comentarista freqüente aqui do blog, do ingresso devolvido num show do Baden. Mas na verdade tudo isso reflete simplesmente um grande desencontro entre o artista brasileiro e seu público.

Por que vamos para o exterior? porque achamos tudo muito charmoso e interessante, ou porque desprezamos o Brasil? Porque a saída para a música brasileira continua sendo o aeroporto, como dizia o Tom. Eu moro aqui e daqui não saio por nada, apesar de tudo o que minha amada cidade vem passando. Mas minha música, nascida aqui, mora longe. Para que eu possa exercê-la com dignidade e liberdade de criação (sim, o mercado é uma ditadura igualmente sangrenta), minha música vive no exílio, apesar de feita e criada no Brasil e para os brasileiros.

Já toquei na Estonia, na Eslovênia, na Macedonia, mas até hoje não conheço Manaus. Posso levar minha banda completa para os rincões mais distantes do planeta, mas sair com ela do eixo Rio- SP é praticamente impossível. Quando mostro fotos aqui dos países onde toquei ou vou tocar, quero dividí-las com os possíveis leitores, e quem sabe fazer com que todos sintam uma pontinha de orgulho por ver a nossa música ser tão amada e respeitada mundo afora. Assim como eu, há muitos.

Músicos querem viver com conforto, como todo o mundo. Se a questão fosse enriquecer, fazer dinheiro, escolheríamos o modo mais fácil, que é prostituir nossa arte _ tem muita gente boa que fez essa opção, como todo o respeito. Pra quem quer continuar fazendo música com tesão e alegria, sabendo que não irá morrer de fome na próxima esquina e poderá continuar honrando seu dom... provavelmente o exílio da música seja a única saída. Não a que desejamos, mas a saída possível.


terça-feira, outubro 16, 2007

de novo

Lá vamos nós de novo... Faltam só mais 2 semanas!
Daqui a pouco começa a maratona outra vez. Estas fotos são do deslumbrante anfiteatro de Vienne (não Viena d' Áustria, mas da França) onde tocamos no ano passado, e que nos rendeu um belo especial na TV francesa (as fotos foram tiradas ainda na passagem de som, `a tarde). Não iremos lá este ano, mas passaremos por locais igualmente bacanas ou quase tanto quanto.

Perguntas que vou botar no índex das minhas próximas entrevistas _ ou seja, temas sobre os quais não quero ou não agüento mais falar:

1- você acha que faz mais sucesso no exterior do que no Brasil?

2- por que você se apresenta tão pouco no Brasil?


3- você tem alguma mágoa por fazer mais sucesso lá fora do que aqui? (como assim, mágoa???)

4- seu público lá fora é formado por brasileiros ou locais?


Atenção! O conceito 'lá fora' parece indicar que 'aqui dentro' as coisas são completamente diferentes, ou que estamos presos 'aqui dentro' em alguma espécie de gaiola invisível. Mas os brasileiros que estão 'lá fora' também raramente aparecem nos meus shows. Portanto eles continuam 'aqui dentro' pra mim, ou sou eu que estou 'lá fora' demais pra eles? Vai saber...


domingo, outubro 14, 2007

fé e confronto

Minha sobrinha Nayra (comigo aí na foto), que é budista praticante, me mandou o texto abaixo, que reproduzo aqui para vocês, esperando que o autor _ que não conheço _ não se incomode. Gostei muitíssimo, até porque em nossos estudos semanais dentro de nosso grupo espírita a conclusão tem sido, com poucas variantes, a mesma. O texto é longo, mas vale a pena. Vejam só:

A Luta Budista Pela Paz e Pela Ética: Será Correto Confrontar a Ignorância?
Carlos Cardoso Aveline

Do ponto de vista da filosofia esotérica, o longo confronto entre o povo e os militares de Mianmar merece ser examinado em profundidade. Os brasileiros de boa vontade têm algo sagrado a aprender com a luta dos monges e dos cidadãos da antiga Birmânia.

Quando se observa com atenção os fatos daquele país asiático, podem surgir algumas perguntas desafiadoras. Até que ponto, por exemplo, é sábio ou correto desafiar as injustiças?

"O caminho espiritual é o caminho da harmonia", dirá alguém. "Não é o caminho do confronto ou da violência. Talvez os monges devessem estar meditando e orando, ao invés de desafiar as autoridades da ditadura militar birmanesa. Por que motivo, então, milhares de monges treinados na filosofia universalista e fraterna do budismo decidiram enfrentar as autoridades do seu país?"

Na verdade, a falsa impressão de que "ser espiritual é evitar confrontos" constitui uma das armadilhas e ilusões mais perigosas no caminho do auto-conhecimento, e no caminho da ética.

Ser espiritual é seguir os princípios básicos da verdade universal - de acordo com a voz da nossa própria consciência e segundo o nosso grau de discernimento, sabendo que cometeremos erros e aprenderemos lições. Estes princípios universais estão presentes nas principais religiões e filosofias de todos os tempos, e a gradual compreensão deles nos leva a uma ética que é vivida de modo prático, espontâneo e natural.

É claro, porém, que se deve evitar a violência, e os monges de Mianmar/Birmânia têm sido sempre rigorosamente não-violentos.

O confronto das injustiças sociais e políticas - assim como o confronto da hipocrisia "espiritual" - deve ser feito através da força da paz interior presente em cada ser humano. Mahatma Gandhi chamava esta força de 'satyagraha', palavra que pode ser traduzida como 'firmeza na verdade', ou 'firmeza na sabedoria'.

Nos anos 1980, os 'empates' liderados por Chico Mendes na Amazônia eram confrontos feitos por seringueiros desarmados contra os destruidores da floresta, e aconteciam no próprio local da destruição, enquanto ela estava ocorrendo ou no momento em que iria começar. Essa forma de ação direta em defesa da floresta foi uma versão brasileira dos confrontos coletivos não-violentos que Gandhi promoveu décadas antes na Índia, sob o nome de 'satyagraha'.

Os bons confrontos de palavra e de pontos de vista também fazem parte da tradição zen-budista. Além disso, o budismo é a inspiração filosófica e espiritual de várias artes marciais orientais, nas quais se estuda a violência para melhor evitá-la e para eliminar as suas causas.

A síntese real e a verdadeira "harmonia paradoxal" entre posições frontalmente opostas é uma meta legítima a alcançar; porém, ela só pode ocorrer no território da ética e da justiça, isto é, quando as duas partes do conflito compartilham e têm em comum alguns princípios éticos básicos. Sem ética não pode haver uma verdadeira síntese, mas apenas uma conciliação superficial e não-durável entre fatores inconciliáveis como Paz e Injustiça, ou Paz e Falsidade. O mero conflito tampouco é solução.

Sem dúvida, o conceito de Fraternidade Universal é um instrumento central para que se possa compreender a evolução da vida em todos os níveis, e o pensador russo Piotr Kropotkin provou que, na evolução das espécies, a ajuda mútua é mais importante do que a competição.

No plano humano, é importante levar em conta que há uma diferença - nem sempre visível, porém decisiva - entre fraternidade e hipocrisia. Como diz a sabedoria popular do Brasil, "as aparências enganam". Portanto, "o hábito não faz o monge" e "nem tudo o que reluz é ouro". Este é um detalhe de grande importância, que ainda deve ser compreendido por alguns setores do movimento pacifista brasileiro.

Não basta fazer propaganda de uma atitude conscientemente pacífica e ostensivamente fraterna no plano das emoções pessoais. É preciso olhar de frente e com serena lucidez para a violência e a injustiça existentes hoje no Brasil. Fechar os olhos para os desafios e paradoxos da vida pode levar a um fazer-de-conta puramente infantil.

Não é correto, portanto, lavar as mãos e - em nome da paz - deixar de lado a verdade, ou a justiça, ou os princípios éticos. Seja no plano individual ou no plano coletivo, esse é o caminho da ignorância espiritual e não da sabedoria.

A conclusão inevitável é que tanto os monges ativistas como o povo de Mianmar estão corretos, do ponto de vista espiritual, ao confrontar e desafiar há décadas a opressão das 'autoridades' daquele país.

Literalmente, aliás, a palavra 'confrontar' significa 'colocar frente a frente'. O Jesus Cristo do Novo Testamento confrontou os "sepulcros caiados", os "mercadores do templo" e as autoridades religiosas da sua época. Helena Blavatsky colocou a sabedoria universal frente a frente com a ignorância socialmente organizada, e assim "confrontou" os dogmas religiosos e científicos do século 19. Leon Tolstoi, com seu cristianismo comunitário, desafiou de frente a injustiça social da velha Rússia. Mahatma Gandhi "confrontou" sem violência a dominação colonial na Índia.

Chico Mendes colocou-se frente a frente, confrontou com as forças econômicas e políticas cujo projeto histórico incluía - e ainda inclui - a destruição da floresta amazônica. Do mesmo modo, os monges budistas e demais cidadãos da antiga Birmânia confrontam, fisicamente desarmados, a ditadura militar e suas modernas armas automáticas.

É claro que a luta democrática em Mianmar não surgiu por acaso. O budismo é a mais filosófica das religiões. Ele tem pontos comuns com a teosofia, a filosofia esotérica e o taoísmo filosófico.

Qual pode ser, então, a contribuição ética central que o budismo de Mianmar dá para os movimentos sociais e o pensamento espiritual em todo o mundo, inclusive no Brasil?

Na primeira parte do século 21, tanto o pensamento político de 'direita' como o pensamento político de 'esquerda' parecem ter perdido grande parte do seu conteúdo ético. Há, também, uma decadência moral das velhas tradições e instituições religiosas burocratizadas, tanto no Oriente como no Ocidente. Estes fatos estão na fonte e origem da aguda decadência social / ecológica que vemos em diferentes regiões do mundo.

No entanto, a vida se renova incessantemente, de acordo com os ciclos e os ritmos do universo. Cada noite precede e prepara o nascimento de um novo dia. No Ocidente como no Oriente, já é inevitável que tanto o budismo, a filosofia ecológica, a nova ciência, a filosofia taoísta, a filosofia esotérica e o cristianismo não-sectário surjam hoje como fontes de uma nova ética e de uma nova proposta social que é simultaneamente global e local, individual e coletiva, feita de sonho e utopia, realismo e fatos concretos.

Neste começo de amanhecer planetário, a luta não-violenta dos cidadãos de Mianmar surge em 2007 como um novo raio de sol. Ela é um exemplo luminoso da confluência entre a filosofia espiritual profunda e a luta muito concreta pela justiça social. Ela é um exemplo prático de harmonia entre a sabedoria eterna e a vida cotidiana, e entre a paz interior e a coragem de lutar por um mundo melhor. Essa é a grande síntese a construir, também no Brasil.


domingo, outubro 07, 2007

rádio-cabeça

No momento, na minha rádio-cabeça, toca sem parar o lindíssimo CD 'Iô Sô', o novo do meu amigo Sérgio Santos (que aparece aqui na foto, junto comigo e com o Tutty, na visita que fizemos em Olinda a D. Selma do Côco, quando lá estivemos no Projeto Pixinguinha, em 2005). Sérgio para mim é um dos grandes compositores brasileiros da atualidade, e este seu novo trabalho é daqueles que justificam a velha frase (que infelizmente não se usa mais): 'disco é cultura'. Por isso fico feliz em que seja ele o atual ocupante da minha rádio particular.

Sempre tive música rodando na minha cabeça 24 horas por dia, o Tutty também tem, a maioria das pessoas que conheço têm também (até porque a maioria de nossos amigos é composta de músicos). A música está em mim até durante o sono _ muitas vezes acordo no meio da noite com uma canção qualquer na cabeça, durmo e acordo, e as músicas ainda estão lá. Pode ser maravilhoso, dependendo do repertório. Pode ser horrível se você não consegue mudar de disco. Foi infernal, por exemplo, numa época em que fiquei com a gravação de Blossom Dearie para 'Give Him The Oooh-La-La" por mais de um mês na cabeça, rodando sem parar. No final eu não agüentava mais, e passei um bom tempo sem poder ouvir a voz dela (que, aliás, adoro).

Pois eis que agora fico sabendo que nem todo o mundo é assim. E eu que achava que isso era o normal... Está lá no livro 'Alucinações Musicais', do neurologista britânico Oliver Sacks: músicos apresentam alterações cerebrais jamais vistas em outros profissionais. E há pessoas para quem a música não passa de um ruído, a chamada 'amusia', que deve ser uma verdadeira tortura para quem tem. São pessoas que simplesmente não percebem a música, ou mesmo não percebem certas sutilezas, como tons e semitons. Segundo o dr. Sacks, isso se dá quando parte da rede cerebral está faltando (sem querer ser maldosa, deve ter gente `a beça com esse problema por aí...)

A rádio interna que tenho em minha cabeça desde que me entendo é chamada no livro pelo nome assustador de 'alucinação musical'. Ainda bem que o dr. Sacks teve o cuidado de esclarecer que não se trata de loucura, e sim de um tipo diferente de percepção. Ele concorda com Darwin, que dizia que a música nos diferencia das outras espécies, e completa dizendo que o ser humano é o único animal que tem "a capacidade de ouvir e analisar sons complexos, com tons, semitons, ritmos, palavras".

Elementar, meu caro doutor: é isso aí, somos humanos e temos um espírito capaz de entender essa maravilha. Música é tudo. É a linguagem mais completa de todas, a arte que dispensa qualquer aparato, como imagens ou palavras, para mexer com as emoções de quem ouve. Música na cabeça é um privilégio.

PS- pois então, não percam o belo CD do Sérgio.


terça-feira, outubro 02, 2007

alegria!

Um pouco de criança pra iluminar o blog, que anda muito soturno...

Pode até ser overdose do cara aqui no Outras Bossas... Mas ele está merecendo. Pois eis que o nosso anotarista escreveu sua primeira estória _ enfeitada, porém verídica.

O MISTÉRIO DA ÁGUA DESAPARECIDA

Por Angelo Pavan

Era de noite. Eu estava com muita sede. Aí eu fui no quarto da minha avó. Estava escuro e eu bati com a cabeça na porta. Mas ninguém acordou.

Então eu roubei a água da minha avó, que estava em cima do criado-mudo* ao lado da cama dela, e saí correndo. Bebi a água e deixei em cima da mesa do meu quarto.

O vovô procurou a água com a lanterna e não achou.
Aí o ladrão contou o mistério: era o sr. Angelo!

24/09/2007

*-Criado-mudo: em paulistês, quer dizer mesinha de cabeceira.