Hoje se completam 10 anos do dia em que nossa cidade amada, New York, sofreu o atentado que derrubou as torres do WTC. Por aqui hoje só se fala nisso: onde se estava, qual a primeira sensação ao ver/ouvir a notícia, etc.
Eu me lembro muito bem de onde estava (no Rio, com minha filha mais nova), e sei que o Tutty estava em SP (ensaiando com amigos), e também lembro da sensação geral de que aquele filme estava sendo real demais. Mas não posso esquecer que, infelizmente, alguns apressados e/ou inconsequentes chegaram a dizer: "bem feito", sem se dar conta de que ali entrava o Terceiro Milênio, e seu começo não era uma promessa de paz. E de que nunca mais nossas vidas seriam as mesmas. E que o mundo, que parecia tão ao alcance de todos, iria ficar cada vez mais difícil de se percorrer.
New York tem suas durezas e dificuldades. Tem aquela famosa 'New York attitude', que não respeita nem furacão. Tem o esnobismo de dizer "if I can make it there, I'll make it anywhere". Tem aquele pessoal que fica no balcão e bate com a grade do guichê na sua cara. Tem a frase-símbolo dos novaiorquinos - "it's your problem" e sua variante, "I don't care" (que em Paris se chama "desolé", e aqui no Brasil começa com a letra F).
Mas amamos essa cidade. Foi onde eu e meu companheiro nos conhecemos e nos apaixonamos. Onde duas de nossas quatro filhas moraram por algum tempo. Onde também passamos poucas e boas. Ainda é - e sempre será, acredito - um imperdível lugar de música e de todas as outras artes. E é, sim, a capital do mundo, onde tem de tudo um muito.
Em 2000 - um ano antes do atentado, portanto - eu escrevia uma coluna semanal no jornal "O Dia". Voltando de uma tour americana, escrevi o texto abaixo sobre uma adorável figura novaiorquina, que conheci de passagem. Segue aqui, então, em 11 de setembro de 2011, este modesto tributo à minha cidade tão querida.
GENTILEZA
(publicado em 10/8/2000)
Lyonette deve andar pelos seus 70 anos, ou quase. Trabalha no café da livraria Barnes and Noble (filial Chelsea, 6ª Avenida, em Nova York), usa um uniforme preto com aventalzinho branco de garçonete e prende os cabelos com uma rede que me faz lembrar alguma coisa boa da minha infância, nas profundezas dos anos 50. Terá sido por isso que gostei tanto dela? O cabelo preso com rede terá talvez me levado de volta ao quarto da Nercília, que trabalhava em nossa casa, comprava “A Modinha Popular” e sumiu com um namorado num dia de carnaval.
Talvez Nercília tenha envelhecido com a cara de Lyonette. Talvez Lyonette seja uma Nercília americana, já cansada de muitos carnavais, hoje atendendo num balcão de cafeteria. Ela deve ter filhos e netos, uma família, uma igreja, uma comunidade a que pertence. Trabalha na Barnes and Noble de segunda a sábado, horário integral, servindo cappucinos e croissants para novaiorquinos estressados. E no entanto, Lyonette é uma pessoa gentil. Coisa rara, raríssima em Nova York, onde cada vez mais é cada um por si e salve-se quem puder.
Tomar café da manhã dentro de uma grande livraria, que tem praticamente qualquer livro que se queira, é um prazer que pode ser facilmente estragado por um mau atendimento. Novaiorquinos são assim mesmo: não estão nem aí para você ou seus problemas. Se você pergunta “tudo bem?”, arrisca ouvir de volta um “não é da sua conta”, para dizer o mínimo. Nas lojas, os vendedores são arrogantes, vai comprar ou não? Azar o seu. Próximo! Coisas de país rico demais, onde um cliente a mais ou a menos não faz a menor diferença.
Por isso fiquei fã de Lyonette, que me pergunta como eu vou, se quero hoje o mesmo de ontem, como foi meu dia _ essas coisas simples que a gente ainda faz aqui no Brasil. Por gentileza, e nada mais.