quarta-feira, outubro 28, 2009

cidade mutante

Acho que nenhuma cidade do planeta tem sido tão mutante quanto a nossa. Se pensarmos que a foto acima é da virada do século 19 para o 20, no tempo em que as tias baianas chegavam com seus balangandans e seus costumes, quando o terreiro de Tia Ciata se tornava o berço do samba... É inacreditável. Foi outro dia mesmo! Cem anos para uma cidade é muito pouco.

Também é inacreditável imaginar que esta era a paisagem da Lagoa Rodrigo de Freitas, na altura da Catacumba, há menos de 50 anos atrás. As casas ficavam plantadas à beira d'água, quase não havia prédios e as águas eram limpas. Em compensação, vejam abaixo as favelas da Catacumba (hoje reflorestada) e da Praia do Pinto (onde atualmente fica o condomínio conhecido como Selva de Pedra). Estas foram erradicadas a tempo, salvando as áreas do Leblon e da Fonte da Saudade de se tornarem uma imensa Rocinha (que no final dos anos 60 tinha em torno de 30 barracos, e hoje é a maior favela da América Latina).


Já a próxima foto (abaixo) mostra uma Ipanema do tempo em que minha avó dispensou a compra de uma casa no Jardim de Alá, por achar que aquele areal não iria dar em nada. Anos depois minha mãe foi morar lá com meus irmãos ainda pequenos, antes do meu nascimento (quando nasci, nossa família já havia se mudado para o Posto Seis, na divisa entre Copacabana e Ipanema). 

É uma cidade mutante e movente, sem dúvida. Algumas mudanças vi com meus próprios olhos, como a favelização acelerada, o crescimento absurdo da Barra (com o descumprimento do Plano Lúcio Costa), a criação do belo Aterro do Flamengo, a decadência da outrora aprazível Zona Norte, a copacabanização de Ipanema e a transformação de Copacabana numa imensa Madureira-sur-mer... Tudo isso foi acontecendo em rapidez vertiginosa, e nós cariocas tivemos que ir nos acostumando, assim como nossos pais e avós tiveram que entender as mudanças feitas pelo prefeito Pereira Passos em sua época, como a destruição do Morro do Castelo para que se abrisse a futura avenida Rio Branco. 

Sabemos que muitas outras mudanças virão, principalmente agora, com o Rio sediando Copa do Mundo e Olimpíadas. Tudo bem, que venham e que sejam para melhor. Os últimos 15 dias foram infernais, é verdade, com a violência explodindo por todos os lados. Era de se esperar, de certa forma, a partir do momento em que algumas favelas foram pacificadas _ e não me venham dizer que não adianta pacificar duas ou três, num universo que chega a quase mil: adianta sim, tem um efeito simbólico que é exatamente o que está provocando essa reação brutal do outro lado. E pelo menos não existe no momento aquela sensação de desamparo que os governos do nosso passado recente nos faziam sentir. 

Não fui eleitora dos atuais governador e prefeito do Rio. Mas sei reconhecer quando um trabalho está apresentando algum resultado, por mais que falte quase tudo a fazer. Aqui em casa o som de tiros que nos chegava do morro Dona Marta, a um quilometro e meio de distancia, nunca mais foi ouvido. Imagino o alívio que deve estar sendo para quem mora lá, com o fim do toque de recolher imposto pelo tráfico e outras barras pesadas que tornavam a vida ali insuportável. Seria fantástico que isso se estendesse para outras comunidades, onde há tanta gente que batalha honestamente e cria suas famílias tendo que conviver lado a lado com a bandidagem.

Vamos torcer para que a cidade que é de todos os brasileiros possa sobreviver mais uma vez e dar a volta por cima. E que haja ajuda de instancias superiores, principalmente do governo federal. O Brasil precisa merecer o Rio.


quarta-feira, outubro 21, 2009

meus discos, meus livros

Nossa coleção de vinis é preciosa. Para nós, pelo menos. Temos coisas que guardamos desde a adolescencia, LPs de jazz, bossa-nova (principalmente), música latinoamericana, européia, clássicos, alguns inclusive  bastante raros. Sabemos que existe por aí um mercado onde alguns desses exemplares valem muito dinheiro. Ainda assim, continuamos guardando, sentimentalmente, esses discos que nos fizeram a cabeça, e cujo som é tão mais quente e mais vivo do que os CDs das mesmas gravações que temos aqui em casa. São para nós itens insubstituíveis, entre os nossos modestos bens culturais.

O cara veio aqui em casa vender umas roupas. Por que deixá-lo entrar? Porque ele já me vendera algumas coisas trazidas da França há muitos anos atrás, num tempo em que eu ainda viajava pouco e as importações no Brasil eram bastante raras. Estou falando dos jurássicos anos 80. Além do mais, ele voltara recomendado por uma grande amiga minha, também cantora, a quem ele vendera algumas coisas bacanas. Eu estava de bobeira em casa com minha filha mais nova, e ela também se interessou. OK, então vamos ver o que o fulano trouxe.

Ele tinha duas enormes sacolas cheias de roupas, despejou tudo na sala e fomos vendo o que nos interessava - não era tanta coisa assim, mas não quisemos fazê-lo perder a viagem e fomos lá dentro experimentar o que ele nos oferecia. Ele ficou na sala, admirando nossa coleção de vinis.

"Ainda existem discos desses?" perguntou ele. Sim, claro, respondemos, tem até gente que compra, e quanto mais difíceis de encontrar, mais caros.

Santa ingenuidade. Dias depois, procurando um LP que queria ouvir, Tutty deu por falta de vários, justamente alguns dos mais raros da coleção. Quem foi, quem não foi, a imagem das sacolas no chão e a lembrança da pergunta aparentemente desinteressada do nosso visitante me esclareceu logo o que tinha acontecido. Mas para não julgar mal um inocente, liguei para a amiga que o havia indicado. "Você conhece bem esse cara?" - perguntei. E ela: "mais ou menos... ele é conhecido do meu irmão, lá do Clube dos Colecionadores de Vinil".

Bingo!

Conseguimos o endereço da figura e Tutty foi até lá, acompanhado de um de nossos genros (eu não sabia o que ele iria encontrar, e achamos legal que houvesse uma testemunha). Tocaram a campainha, o cidadão abriu, e as paredes forradas de LPs na sala não deixavam dúvida, era ele mesmo. Depois de algumas explicações preliminares (e negativas veementes), Tutty encontrou o que procurava. O cara ainda insistia em dizer que era tudo dele, mas os LPs, já prontos, catalogados e encapados em plástico, traziam a inequívoca anotação, feita à mão pelo dono, então adolescente: "Tutty Moreno 1965". Faltavam dois, que ele já revendera ou coisa pior. O espertinho pediu 24 horas para mandar devolvê-los em nossa casa, e foi realmente o que aconteceu, embora um deles tenha voltado sem a inscrição. Ele certamente teve de conseguir um equivalente em algum lugar, pois o nosso exemplar já deveria estar longe àquela altura, no Japão ou em Londres.

Nossas filhas, indignadas, achavam que deveríamos suspender o cheque pré-datado que fora dado como parte do pagamento pelas roupas. Tutty se recusou: "ele é desonesto, mas nós não somos". O cheque foi devidamente honrado. E as roupitchas, dadas para caridade.

Nossos vinis continuam aqui, mas, hoje em dia, fora de acesso a qualquer visitante. Essa foi a única moral da história, pois em princípio, continuaremos confiando nas boas intenções do ser humano.

PS- esta história aconteceu já tem uns seis ou sete anos...


sexta-feira, outubro 16, 2009

adrenalina!

Música é um negócio engraçado: você recebe do parceiro (ou compõe você mesmo/a) uma melodia, por exemplo, e vai ouvindo os sons que ela sugere. Sempre soa parecido com algumas sílabas, que vão formando palavras, e você começa obsessivamente a repetir a música, até que as palavras juntas comecem a fazer algum sentido. E vai inventando uma história em cima daquilo. E descascando as palavras, até que saia tudo o que não for preciso pra contar a história dentro da melodia proposta. É mais ou menos assim que funciona, pelo menos comigo.

Meu parceiro Francis Hime estava com urgencia de uma letra para um samba recente, que ele tinha composto para incluir em seu novíssimo CD. Mandou para mim a música, e o que saiu foi a letra que aqui segue, inspirada numa personagem real. Trata-se de uma moça (que não conheço pessoalmente, é bom que se diga), geógrafa e passista (profissional! ela se apresenta como "passista-show da Mangueira"), e que mantém um interessante blog sobre as raízes do samba, meio-ambiente e urbanismo. Ela escreve bem, e foge do estereótipo da rainha de bateria que só pensa em ficar saradona para aparecer na avenida. O que me fez pensar em quantas moças bacanas, multitalentosas no samba e na vida, devem existir por aí. E o povo só vê o que é visível e óbvio.

Sem pedir licença, e esperando que ela não se incomode por ter virado tema de um samba, fui em frente -  e assim ficou (e é a faixa de abertura do novo CD do Francis, 'Tempo das Palavras'):

                    ADRENALINA (Francis Hime/ Joyce Moreno) 

Samba menina

Que adrenalina (bis) 

Olha só como samba essa menina

Põe cada vez mais adrenalina

Na alma do povo que vai lá

Que palpita

Se ela faz fita

A galera agita, grita

Vai pingando colírio nas retinas

De todos os homens do lugar

Olha lá

É Iemanjá, é Iansã

Sambando até de manhã, veja

Mas debaixo de toda essa beleza

Na alma da deusa, o que será

Que ela sonha?

Ela sonha o futuro das cidades

O meio ambiente, as liberdades

A utopia de Platão

Vai menina

Nessa rotina 

Sob a purpurina, rima 

O brasão de Descartes no estandarte

Engenho com arte e sedução

Quem vem lá

É Iemanjá, é Iansã

Sambando até de manhã, veja

Mas debaixo de toda essa beleza

Na alma da deusa, o que será

Que ela sonha?

Ela sonha o planeta, essa menina

Enquanto a cidade se ilumina

Enquanto pro povo tudo é…

Adrenalina

Samba, menina

Que adrenalina

Samba menina… 


domingo, outubro 11, 2009

a vida segue

Seguimos neste curto período de não-trabalho, eu um tanto ou quanto entediada com o mundo, já que não estamos fazendo música e é a música que me move, é o que move a nós aqui em casa. Chegamos do Japão há apenas uma semana, mas parece que foi há um século atrás.  As turnês da Europa e do Canadá, então, parece que aconteceram há milênios. O mundo para de rodar quando não estamos criando, tocando, inventando alguma coisa. 

Resta a invenção das crianças, que é sempre coisa boa. Nenhuma delas tem mais o tamanho que tinha quando foram feitas essas fotos, mas foi bom enquanto durou. Daqui a pouco vou começar a sentir aquela saudade que sinto de minhas filhas _ pessoas que não mais irei rever, não como elas eram na infancia. As pessoas que vejo hoje são outras, diferentes, com suas vidas, suas alegrias e tristezas, seus problemas, seus horizontes, seus sonhos. Assim será também com os filhos delas.

Houve três que chegaram praticamente ao mesmo tempo, de três diferentes mães, e foi uma loucura quando se juntaram aqui em casa. Eram até agora os menores, mas vem mais um a caminho e agora serão seis ao todo.

Voilà! A vida tem sempre razão. Os projetos futuros já começam a se desenhar lá na frente, em 2010, e incluem o que talvez seja o disco mais maluco que já fiz na vida. Vamos ver se tudo se confirma e a maluquice acontece mesmo. Como dizia minha mãe: "Joyce, você não tem mais o que inventar?" Pois é. Essa é uma gravidez que nunca termina.

PS- "Hoje em minha casa tem criança, cachorro e televisão/ Tem gente aqui chegando de viagem/ Também tem gente que não/ Nem por isso a música me larga/ Triste, sem inspiração/ O ouvido de dentro é o que importa/ Então eu fiz essa canção..."

"Na Casa do Villa" - CD 'Gafieira Moderna', 2001.


quarta-feira, outubro 07, 2009

voar é preciso?

Somos animais terrestres. Saímos da água, nos criamos na terra, e agora inventamos de voar. Vinicius dizia que uma geringonça mais pesada que o ar e inventada por um brasileiro não podia dar certo. Mas deu. E agora somos também animais voadores, embora carregados pelas máquinas.

Eu detestaria ter de entrar num navio a cada vez que tivesse que sair do Brasil. Digo isso apesar de ser neta de marinheiro _ meu avô, que não cheguei a conhecer, era comandante de navio mercante, e morreu afundado por um submarino italiano, em 1942. Várias vezes, em suas longas viagens, ele levava a família junto, minha mãe ainda criança e seus irmãos também pequenos. Ninguém reclamava de passar semanas em alto-mar, com direito a uma ou outra tempestade de vez em quando. Naquele tempo era assim que se viajava nas grandes distancias. Avião era um luxo para poucos.

Ainda assim, eu dizia, apesar de ser neta de marinheiro, jamais viajei de navio _ cruzeiros, então, nem pensar. Imagino que deva ser um tédio, e não gosto de estar em lugares de onde eu não possa sair quando quiser. No entanto, frequentemente sou obrigada a passar horas sem fim dentro da cabine de um avião. Voar está ficando cada vez mais difícil. E viagens como essa de agora, que nos levou e trouxe de e para o Japão, são as piores.

Deve haver alguma questão ligada às mudanças climáticas, mas nunca vi tanta turbulencia acontecendo no ar. Não faz muito tempo, quando a aeronave atingia a chamada "altitude de cruzeiro", isso significava que os cintos podiam ser afrouxados, o serviço de bordo iria começar e o voo seguiria tranquilo. Não tem sido mais assim. Pode ser que tenhamos pegado um dia atípico, mas nossa volta do Japão foi tremendamente estressante, com turbulencia durante as primeiras 6 horas do trecho Tóquio/Atlanta, e mais turbulencia durante TODO _ eu disse TODO _ o trecho Atlanta/Rio (cerca de 10 horas). O serviço de bordo chegou a ser interrompido, em dado momento. Felizmente todos estavam calmos, mas eu não podia esquecer o que vira no voo de ida: os comissários fazendo um "gatilho" com pedaços de isopor na porta de saída, por onde estava passando ar. Em outros tempos, de menor crise financeira, nenhuma companhia aérea de respeito permitiria que um avião seu saísse do solo com um calço de isopor na porta. Mas foi o que aconteceu, e era a americana Delta Airlines.

Tenho amigos músicos que por muito menos desistiram das longas turnês e restringiram ao máximo esse tipo de viagem. Também conheço gente muito jovem que desenvolveu panico de aviões, e não voa nem morta. Acho que nós aqui em casa não poderemos nos dar esse luxo, por enquanto. Quem faz música criativa no Brasil está condenado a virar caixeiro-viajante da MPB _ "embaixador" seria mais chique, mas o Itamarati mudou muito: agora mesmo, a embaixada brasileira em Tóquio está promovendo um seminário sobre funk carioca, para, quem sabe, tentar reverter a primazia do samba e da bossa-nova no país. Portanto, caixeiros-viajantes é o que somos. 

O que resta é tentar programar as viagens, de forma a reduzir um pouco os deslocamentos e fazê-los menos traumáticos. É o que vamos tentar em 2010.