sábado, setembro 29, 2007

minha cidade sangra

Não vi 'Tropa de Elite' e nem sei se vou ver, embora aqui no Rio não se fale de outra coisa. Estou já há algum tempo em dieta mental, evitando qualquer tipo de imagem que me intoxique o espírito com impressões de ódio e violência. É uma dieta radical, que já cortou até o Jornal Nacional da minha alimentação diária. O que não quer dizer que eu esteja me alienando do mundo. Só não quero ficar com essas imagens impressas em mim. Prefiro ler as mil palavras nos jornais e revistas, e assim ficar a par de tudo o que está se passando. Mas ver com meus próprios olhos, no momento eu não quero não.

Isso posto, o que quero dizer é o seguinte: em sua coluna do Globo de quarta-feira passada, Artur Xexéo pergunta 'o que nos transformou em gente assim' (aqueles que aplaudem as cenas de tortura e violência policial do filme, e escrevem cartas para os jornais reclamando que os direitos humanos só funcionam para os bandidos). Não nos transformamos em 'gente assim' da noite para o dia. Somos gente assim há muito tempo. A coluna me fez lembrar de uma história que aconteceu comigo. No começo dos anos 90, eu fazia parte de um grupo que o nosso amado Betinho –- tão grandioso e digno no documentário dos Três Irmãos de Sangue _ chamava de 'minha tropa de choque'. Éramos alguns artistas e outras pessoas, vagamente definidas como 'intelectuais' (alguns eram mesmo), que acorríamos a qualquer chamado dele quando sua imaginação cismava de lançar alguma campanha solidária. Pois bem, estava o Betinho engajado num projeto chamado 'Se Essa Rua Fosse Minha' (pensado na verdade pelo Aquiles do MPB-4), que criaria uma instituição para dar abrigo a crianças de rua. Gravamos um disquinho em mutirão, com a MPB em peso participando, e a vendagem desse disquinho serviria, como serviu, para conseguir um imóvel que pudesse ser um lugar de proteção para essas crianças contra o abuso e a violência das ruas.

Betinho sabia que podia usar e abusar da gente, portanto eu não tive dúvidas quando ele me ligou pedindo que eu fosse ao programa Sem Censura falar do projeto. Fui e falei, Leda Nagle fez perguntas, eu expliquei tudo direitinho. Ao final do programa, vieram as mensagens dos telespectadores.

O teor da maioria esmagadora das mensagens foi tão brutal que nem eu nem Leda conseguimos ler tudo no ar. A idéia geral era 'tem mais é que matar mesmo'. Sobrou inclusive pra mim, que recebi até alguns xingamentos de brinde. E nem consegui responder direito. Na minha santa ingenuidade, eu achava que crianças eram crianças e que eu não quereria ver um filho meu exposto ao perigo das ruas, portanto o filho de uma família miserável também não deveria estar lá. Mas não era o que os telespectadores achavam. Já nessa época éramos gente bem assim.

Aí lembrei de outra imagem, desta vez a de uma charge do Ziraldo, do século passado, onde numa reunião as pessoas perguntam 'onde andarão aqueles meninos tão simpáticos que vendiam amendoim no sinal', enquanto bandidos entram pela janela, preparando-se para assaltar a casa. Pois é.


sábado, setembro 22, 2007

e vamos lá

É a vida, é a vida, é a vida, trabalho, música, família, gente, tanta coisa pra cuidar. Se eu fosse artista seria autista, e viveria só pra mim. Passava o dia todo imaginando mais e melhores formas de polimento do ego, ganhava quem sabe mais dinheiro e ficava sentada no trono do Sucesso, esperando as Glórias. A opção de mergulho foi outra. Agora, bem-feito. O manguezal protege a Lagoa dos predadores e do tempo. Manguezal é preciso. Viver também é preciso. Vamos lá.

PS- Tuca, saudades também, te escrevo sim.


segunda-feira, setembro 10, 2007

compositor

Compor dá trabalho. Compor É um trabalho: 10% de inspiração e 90% de transpiração, já disse alguém. Eu discordo, acho que a inspiração leva bem mais que 10%, e isso explica o grande número de "vocações sem talento" (como dizia uma falecida amiga minha). A pessoa pensa que só a transpiração é o bastante... e aí fica faltando aquele não-sei-quê que faz a diferença.

Ninguém aprende samba no colégio, e é por isso que hoje os USA vivem grave crise de criatividade na música. Instrumentistas maravilhosos, mas quase nenhum compositor. O cara chega na universidade e aprende a compor. Como se isso se ensinasse... Segundo João Donato, os Estados Unidos são uma maravilha, tem manual pra tudo, e "how to write a song" fica na mesma estante de "how to fry an egg". Gênio!

Agora está rolando cá no Brasil o grande debate sobre direito autoral, com extensa participação do meu querido amigo (e vosso ministro) Gil. Creative commons _ "samba é que nem passarinho, é de quem pegar primeiro", já dizia Donga no comecinho do século passado. "Minha maior inspiração é um telefonema do produtor", dizia Cole Porter um pouquinho depois. Paga, não paga, tem dono, não tem. O direito autoral é o salário do compositor. Está na constituição: a "obra do espírito" é direito inalienável. Será que vai deixar de ser?

Aqui vai a minha contribuição possível para o debate. "Compositor" é uma música minha em parceria com Paulo César Pinheiro, que acertou na mosca quando definiu o tema. Está gravada no CD novo, "Samba-Jazz & Outras Bossas".

COMPOSITOR

música: Joyce
letra: PC Pinheiro & Joyce

Compositor, compositor
mas como é que vive o compositor?
Sem ser showman, sem ser cantor
será que ele paga o lugar que alugou?
será que tem outra função
e faz sua música se faz serão,
será que não?
será que dá pra dar pensão
quando ele brigar com o amor que inspirou a canção?

Compositor, compositor
mas como é que vive o compositor?
que é que vai ser no fim do mês
se ninguém gravar a canção que ele fez?
E se gravar, não leve a mal,
não dá pra viver de direito autoral
compositor
tem muito sócio, sim senhor
Ecad, sociedade, leão, gravadora, editor

Ave Maria, mamãe dizia
meu filho, por favor
siga o disposto, não dê o desgosto
de ser compositor
acho que não adiantou
quem anda na chuva já se molhou
e até gostou
quem vive só do seu valor
sabe da pedreira que é ser um compositor

Quanta vaidade, que veleidade
ser compositor
quanta vontade na flor da idade
de ser compositor...
se dá bloqueio de criação?
autor brasileiro não tem disso não
compositor
só se levar no bom-humor
pior que todo o mundo também quer ser compositor!

Compositor...
todo o mundo quer ser compositor!


domingo, setembro 09, 2007

o anotarista

Angelo gostou da camisa social que ganhou de presente. Comparou com a do avô e chegou `a conclusão de que eram camisas quase iguais: com botão, colarinho, bolso...

"Então, vô, se a a gente botasse uma caneta no bolso da camisa, podia ser anotarista... e sair anotando tudo o que vê!"

Angelo faz cinco anos amanhã. Pelo visto, lá pelos seus doze estará apto a se tornar blogueiro. Um anotarista da internet.


sábado, setembro 01, 2007

(des)construção


Começa assim: você vê no jornal, na TV, na rua, uma profusão de anúncios dizendo alguma coisa como "Humaitá Verde", "Leblon com Charme", "Botafogo Tradicional". Nos informes publicitários, imagens do que resta de Mata Atlantica no Humaitá, das ruas charmosas do Leblon com seus prédios antiguinhos, dos velhos casarões de Botafogo. E, claro, dos novos empreendimentos imobiliários que eles querem que você compre, com área de lazer, piscina, apês decorados e outras surpresas.

O que eles não contam é que o verde será desmatado para a construção do complexo de prédios, e que os antigos predinhos e casarões, se não forem demolidos, estarão cercados por monstrengos semelhantes que lhes tiram a luminosidade e a vista. Eu mesma, em priscas eras, já fui moradora de alguns desses encantadores predinhos baixos, no Jardim Botanico e no Leblon, e me lembro muito bem do horror de acordar com uma serra elétrica ao lado, o bate-estacas das fundações, e finalmente a sombra tenebrosa do monstro em frente. Sem contar com o movimento de carros na pequena rua onde os prédios antigos não têm garagem.

Álbum de família: a infancia de minhas filhas começou nas adoráveis pracinhas do Jardim Botanico, onde a comunidade de moradores era ativa e se organizava, tanto para festinhas juninas que mobilizavam o bairro todo, quanto para abraçar uma figueira centenária que estava sendo ameaçada pela construtora da hora. Depois construímos nossa casa no Recreio dos Bandeirantes, laboriosamente, como uma família de joões-de-barro, aos pouquinhos, `a medida que entrava cada suado dinheirinho que nossa instável vida de músicos permitia. Pensávamos que era um lugar para a gente envelhecer... Ledo engano. A rua foi tomada por prédios, cujos incorporadores prometiam "a natureza" aos incautos compradores. A água pura de mina que tínhamos na rua foi ficando contaminada pelo excesso de fossas, pois não havia (e ainda não há) saneamento básico na área. Ao fim de quase dez anos, nossa casa era uma das últimas a resistir. Cercados de edifícios por todos os lados, achamos de bom alvitre ir embora.

Seguimos para o Leblon, num charmoso predinho de três andares em forma de navio. A vida no bairro era até bastante agradável, até que um monstro de 27 andares começou a ser erguido `a nossa frente. Para completar, a rua, outrora calma, virou point de bares e restaurantes. Mais uma vez, tivemos que seguir na nossa cruzada em busca de tranqüilidade e silencio, até que achamos nosso lar atual, no Humaitá.

Este sempre foi um bairro considerado de passagem, entre Botafogo e Jardim Botanico _ porém cheio de lugares secretos, ruas sossegadas, subidas íngremes que tiram o fôlego dos possíveis interessados, mas oferecendo aos corajosos visões deslumbrantes lá de cima. Ou melhor, cá de cima, de onde escrevo agora. Ficamos totalmente apaixonados por este lugar, do minuto em que entramos até hoje, dez anos depois. Era o Humaitá Verde, que hoje vemos nas propagandas do mais recente empreendimento, felizmente do outro lado do vale _ mas que certamente não será o último. Nosso bairro está sendo descoberto pela especulação imobiliária, e só Deus sabe até onde ela irá, com sua fome insaciável de lucro.

No outro dia, um taxista comentou com o Tutty, sobre Botafogo: "agora sim, isso aqui está ficando um bairro legal, cheio de prédios, shoppings, Lojas Americanas, hipermercados... vai ficar igualzinho a Madureira!" Ele falava sério, acreditando mesmo no "progresso". Mas quem conheceu o suburbio carioca no tempo em que suas ruas eram cheias de casas simples com cadeiras na calçada, sobrados e varandas, rodas de choro, famílias reunidas, crianças brincando, sabe muito bem a ameaça que essa frase esconde.

PS- a vista da foto acima não é a da nossa casa, e sim do alto do Pão de Açucar, talvez um dos últimos redutos de onde ainda será possível uma visão total do Rio.