minha cidade sangra
Não vi 'Tropa de Elite' e nem sei se vou ver, embora aqui no Rio não se fale de outra coisa. Estou já há algum tempo em dieta mental, evitando qualquer tipo de imagem que me intoxique o espírito com impressões de ódio e violência. É uma dieta radical, que já cortou até o Jornal Nacional da minha alimentação diária. O que não quer dizer que eu esteja me alienando do mundo. Só não quero ficar com essas imagens impressas em mim. Prefiro ler as mil palavras nos jornais e revistas, e assim ficar a par de tudo o que está se passando. Mas ver com meus próprios olhos, no momento eu não quero não.
Isso posto, o que quero dizer é o seguinte: em sua coluna do Globo de quarta-feira passada, Artur Xexéo pergunta 'o que nos transformou em gente assim' (aqueles que aplaudem as cenas de tortura e violência policial do filme, e escrevem cartas para os jornais reclamando que os direitos humanos só funcionam para os bandidos). Não nos transformamos em 'gente assim' da noite para o dia. Somos gente assim há muito tempo. A coluna me fez lembrar de uma história que aconteceu comigo. No começo dos anos 90, eu fazia parte de um grupo que o nosso amado Betinho –- tão grandioso e digno no documentário dos Três Irmãos de Sangue _ chamava de 'minha tropa de choque'. Éramos alguns artistas e outras pessoas, vagamente definidas como 'intelectuais' (alguns eram mesmo), que acorríamos a qualquer chamado dele quando sua imaginação cismava de lançar alguma campanha solidária. Pois bem, estava o Betinho engajado num projeto chamado 'Se Essa Rua Fosse Minha' (pensado na verdade pelo Aquiles do MPB-4), que criaria uma instituição para dar abrigo a crianças de rua. Gravamos um disquinho em mutirão, com a MPB em peso participando, e a vendagem desse disquinho serviria, como serviu, para conseguir um imóvel que pudesse ser um lugar de proteção para essas crianças contra o abuso e a violência das ruas.
Betinho sabia que podia usar e abusar da gente, portanto eu não tive dúvidas quando ele me ligou pedindo que eu fosse ao programa Sem Censura falar do projeto. Fui e falei, Leda Nagle fez perguntas, eu expliquei tudo direitinho. Ao final do programa, vieram as mensagens dos telespectadores.
O teor da maioria esmagadora das mensagens foi tão brutal que nem eu nem Leda conseguimos ler tudo no ar. A idéia geral era 'tem mais é que matar mesmo'. Sobrou inclusive pra mim, que recebi até alguns xingamentos de brinde. E nem consegui responder direito. Na minha santa ingenuidade, eu achava que crianças eram crianças e que eu não quereria ver um filho meu exposto ao perigo das ruas, portanto o filho de uma família miserável também não deveria estar lá. Mas não era o que os telespectadores achavam. Já nessa época éramos gente bem assim.
Aí lembrei de outra imagem, desta vez a de uma charge do Ziraldo, do século passado, onde numa reunião as pessoas perguntam 'onde andarão aqueles meninos tão simpáticos que vendiam amendoim no sinal', enquanto bandidos entram pela janela, preparando-se para assaltar a casa. Pois é.