domingo, novembro 26, 2006

Rede Caílson de Hotéis

Esta suite meio antiguinha, com cara de casa de boneca, é o quarto de Sissi, a Imperatriz, no Hilton de Viena. Ficamos lá quando fomos tocar no Birdland, clube de jazz que pertence ao Joe Zawinul, e que fica no próprio hotel. Este não é um Caílson. E o que seria um Caílson, afinal de contas? Vamos lá que eu explico.

Dori diz que foi invenção do Danilo. Pode até ser, mas aprendemos com ele, Dorival, e portanto fica sendo uma legítima criação caymmica, já incorporada ao nosso dia-a-dia. Por outro lado, pra citar o Gil, aquela história de 'um dia chanceler, um dia sem comer' acontece com músicos de todo planeta, principalmente os abnegados que labutam na cena inóspita do jazz. Coincidiu de hoje ser meu dia de mendigo, meu amigo. E assim lá vamos nós mais uma vez parar na famosa Rede Caílson de Hotéis, que é mundial e cada vez mais surpreendente.

Um hotel, para ser legitimamente Caílson, tem de ter aquela qualidade fundamental: ser meio (ou totalmente) caído. Pode ser com relação aos serviços, `a aparencia, `a qualidade dos quartos e banheiros, roupa de cama, ou tudo isso junto. Nas cidades pequenas do interior do Brasil, por exemplo, é praticamente certo que iremos parar em algum Caílson, que muitas vezes é o único hotel da área, e portanto não há outro jeito. Já estivemos num onde o banheiro não tinha box nem cortina, e sim um rodo ao lado do chuveiro, para que o próprio hóspede pudesse evitar a inundação... Mas não se iludam os queridos leitores, o primeiro mundo é pródigo em Caílsons, mesmo alguns que `a primeira vista parecem bastante charmosos, como o da foto aí ao lado. Este era uma graciosa villa na região do Veneto, na Itália. E de fato, para sermos justos, não foi dos piores. Mas por um ou dois quesitos importantes, como a falta de telefone no quarto, por exemplo, entrou para o rol.

O glamour da nossa profissão nem sempre corresponde `as expectativas, e a vida de um músico de jazz (pois é assim que nos classificam lá fora) é pura gangorra. Por isso mesmo, um dia eu posso estar no fabuloso Hotel Negresco, em Nice, e no outro dia num Caílson qualquer de alguma cidadezinha européia, onde o chuveiro não funciona, o tapete tem cheiro de mofo, coisas desse tipo. Posso estar numa suite de 100 m2 do New York Palace Hotel, como aconteceu quando fui participar de um evento chamado Songwriter's Hall of Fame (e cantei no mesmo palco que Liza Minelli, Tony Bennet, James Brown, coisa que os meus escritores de press release custaram a entender _ não cantei com eles, e sim no mesmo evento e na mesma noite, o que é bem diferente. Não teve nem aquele grand-finale com todo o mundo junto). Mas acabado o evento, rua. E lá vamos nós pra mais um Caílson da vida, mais compatível com nossos bolsos. New York, como todo o mundo sabe, é a campeã mundial da rede Caílson.

Mas a Europa é imbatível. E assim foi que na minha última tournée por lá, em junho/ julho/ agosto deste ano, ao lado de alguns hotéis realmente muito bons, acabamos passando por tantos Caílsons, especialmente na Inglaterra, que fui obrigada a fazer uma classificação geral da rede, que ficou assim:

1- Caílson Standard (Holiday Inn, Ibis e assemelhados)
2- Caílson Luxo (Hilton de cidade pequena, como Leeds, por exemplo)
3- Caílson Tradição (muito comum na Europa, é aquele que no século 19 era chiquérrimo. A Rainha Vitória se hospedou lá com a família, Noel Coward escreveu uma canção no apartamento, etc etc... Hoje em dia é puro mofo)
4- Caílson Country (in the middle of nowhere)
5- Caílson Al Mare (para balneários)
e outros ainda em estudo...


Estes poderiam perfeitamente entrar para a célebre rede 'Worst Western Hotels', que a esta altura já é nossa velha conhecida. Para nossa sorte, tivemos um final com chave de ouro em Dublin, onde ficamos em Farmleigh, residencia oficial dos convidados do governo irlandês, o que ajudou bastante a desfazer a má impressão. Sabe como é: um dia rico, um dia pobre, um dia no poder, um dia chanceler, um dia sem comer... O ministro sabe das coisas. Daqui a pouco ele também volta pra Rede Caílson.



terça-feira, novembro 21, 2006

Altman foi embora


Acabo de saber da partida de Robert Altman, um dos meus cineastas preferidos e com quem, sem jamais tê-lo conhecido, fiz um trabalho em parceria. Explico: pra quem não sabe, o filme dele de 1991 "O Jogador" ("The Player", radiografia nua e crua de Hollywood), em sua única cena de amor (Tim Robbins e Greta Scacchi num resort `a beira-mar) tem como música de fundo minha gravação (em dueto com meu queridíssimo Bituca) de "Tema pra Jobim", música de Gerry Mulligan, letra minha. A música rola quase que inteirinha na cena, e foi um dos maiores orgulhos da minha vida vê-la escolhida pessoalmente pelo diretor para esta trilha, ainda que a parte financeira da questão tenha me dado mais aborrecimentos do que outra coisa.

Americanos podem ser muito esquisitos quando o assunto envolve dinheiro. No caso, não foi Altman o responsável pela confusão, mas meu muy amigo e parceiro Mulligan, que ao ver minha gravação fazendo parte da trilha do filme 'descobriu' que afinal de contas minha letra era um trabalho feito por encomenda (dele), e portanto não valia o mesmo que a música _ e portanto ele deveria ganhar mais que eu. Foi-se a bela amizade e sobraram-me 25%. Coisas do capitalismo americano.

Agora mesmo estou tentando ter de volta 5 canções minhas, cuja edição assinei com o maestro Claus Ogerman nos anos 70, em priscas eras, num tempo em que eu era mais jovem, mais boba e acreditava que músicos geniais seriam necessáriamente pessoas bacanas. Não haveria nada de terrível nisso, não estivessem incluídas nessa lista músicas como 'Feminina' e 'Mistérios'... Complicado.

De todo modo, com ou sem grana, americanos ou terceiro-mundistas, a morte é o passo inevitável e o único de que podemos ter certeza, não falha. Robert Altman, que Deus o tenha, era um craque. Que pena que eu nunca pude dizer isso a ele diretamente.


terça-feira, novembro 14, 2006

água é luz


Adoro vinho. Detesto a 'atitude' que acompanha alguns tomadores de vinho. A pessoa que cheira a rolha, cheira o líquido, roda a taça, bochecha antes de engolir e não dispensa a longa dissertação sobre ano e safra de cada garrafa, o gosto de couro, de madeira, de abobrinha... É muito chato, corta o barato de quem está apenas a fim de curtir um bom momento e uma boa refeição _ e ainda por cima é de um nouveau-richisme terrível. Podem reparar.

Mas adoro água. E modestamente me considero connoiseuse de águas, assim como alguns se acham conhecedores de vinho. Sei, por exemplo, que a água nunca é insípida, como aprendemos na escola. Umas são mais doces, outras têm um leve sal escondido. Umas têm gosto de bica, mesmo que venham engarrafadas com lindos rótulos. Outras são puríssimas, como a água que sai de qualquer torneira na Áustria (a melhor do mundo, para mim, é a água de Schwaz, cidadezinha alpina onde morava nosso amigo Thomas). Há águas que você só encontra no lugar de origem, como a minha gasosa predileta, a francesa Badoit. 'Une Badoit, s'il vous plaît!' _ e para os que gostam de vinho, estando em Paris, basta pedir 'un rouge ordinaire', que já é jogo. Vinho é uma bebida que não viaja bem. E quanto mais perto do local de produção, melhor.

Sobre vinhos, aprendi o essencial com amigos franceses, que me ensinaram a procurar no rótulo se foi engarrafado no chatêau ou pelo negociante (fuja do negociante). O resto é puramente subjetivo. Tenho um amigo chamado Ludwig, músico de jazz alemão, que foi criado na vinícola da família `as margens do Reno (que alguns quilometros adiante passam a se chamar 'côte du Rhône'). Ele não cheira rolha nem balança a taça, mas na casa dele os vinhos são de total confiança. Ele sabe. Se algum dia eu vier a recebê-lo aqui em casa, posso apresentar a ele a nossa água Petrópolis e sei que ele ficará encantado. Água é luz, como diz o Tutty. E brevemente, para nosso pesar, será talvez a bebida mais cara do planeta.


sábado, novembro 11, 2006

boa morte


Ortotanásia: o direito de se morrer com alguma dignidade, sem máquinas nem tratamentos que prolonguem a vida desnecessariamente. Pois é, parece que agora vai e vamos ter o direito de sair desta vida de uma forma um pouquinho melhor, se as leis deixarem. Quem já teve uma pessoa querida na solidão de uma UTI sabe o horror que é. Eu já tive, e até hoje me pergunto o que teria acontecido se tivesse conseguido evitar a câmara de torturas onde meteram minha mãe. Ela iria morrer mesmo, é claro. Mas com filhos e netos ao lado, com um mínimo de sofrimento, e na casa dela.

Parece que o novo filme do Almodóvar foi gestado em conseqüencia exatamente da morte da mãe dele numa UTI. Ainda não vi, mas tudo o que venha de uma dor como essa tem a minha total simpatia. Se eu não tiver uma morte tipicamente carioca (de bala perdida, essas coisas), pretendo morrer velhinha na minha cama e atravessar a fronteira com calma. Chegando lá, eu conto como foi.


quinta-feira, novembro 09, 2006

América


Terra de Dorival, olha o cara aí... saudades dele e do seu mau-humor engraçadíssimo. Tem dois anos que temos trabalhado juntos direto, e é sempre bom. Harmonia forever! Pena que ele mora longe.

Só queria saber o que ele e Helena estão achando da reeleição do Schwazza lá na California. Eu sou fã dos democratas e assumo. Meninos, eu vi o discurso do Barack Obama na eleição presidencial passada (a da reeleição do Bush), ao vivo, pela TV no comício do Kerry. Políticos mudam depois que chegam ao poder. Mas ali ainda se tinha emoção em estado bruto, uma força e uma verdade. Foi bonito `a beça.

Torço pela America the Beautiful, a América anti-Bush, da contracultura, do bom cinema, de Henry Thoreau, terra de Gershwin, Miles, Mingus, Monk e Coltrane. Um país que tem uma música dessas tem que ter jeito. Não sou antiamericana (o Tom achava que eu era, estava enganado. Sou anti-outras coisas que acontecem por lá). Acho de uma burrice sem fim esse antiamericanismo tipo Hugo Chavez, de censurar Papai Noel no natal das criancinhas da Venezuela. Não é por aí, meu senhor. Barack Obama nele. Henry Thoreau no bolso. John Coltrane na orelha. Aumenta que isso aí é jazz.

Fiquei feliz com a vitória dos democratas.


domingo, novembro 05, 2006

meu Prédio

Era maravilhoso. Todo branco, em estilo mourisco, cerca de cinco andares e um lindo pátio interno, com uma fonte no centro e duvidosas estatuinhas espalhadas ao redor. Nunca entrei em nenhum dos apartamentos, mas no edifício entrei várias vezes, muitas delas acompanhada por namorados ou pretendentes, cujas possibilidades comigo dependiam dos comentários que fizessem sobre o Prédio. Ou, quem sabe, das promessas para um futuro distante, "um dia a gente ainda vai morar aqui", coisas assim. Sonhar não custa nada.

Meu Prédio ficava de frente para o mar, na avenida Atlântica, do outro lado da calçada do Miramar Palace Hotel, cenário de um trágico poema de Vinicius. No terraço do Miramar as meninas iam com os namoradinhos 'tomar um drinque' _ coquetel de frutas para as moçoilas bem-comportadas, coisa que naquela época eu (ainda) era. Êita anos 60... No poema do Vina, a moça se suicidava na solidão do quarto do hotel. A praia ensolarada bem em frente, aquela imensidão azul toda e a moça se matando por amor. Que coisa.

Sonhei durante anos em morar, não no Miramar, mas naquele encantador edifício ao lado, não importando se os apartamentos eram pequenos, como de fato pareciam ser, pois eram muitos. Ao redor do pátio, a quantidade de portas não deixava dúvidas: o Prédio valia mesmo pela beleza da arquitetura externa. E ainda assim, sabendo disso, passei anos da infancia e adolescencia namorando aquele improvável endereço que era meu, meu, meu.

Lá pelo começo dos anos 80, foi-se o Prédio, demolido para dar lugar a mais um pavoroso arranha-céu. Foi-se mais uma ínfima parte de Copacabana, a bela, desde então já destinada a uma sina cruel: Copacabana, ela mesma, é a moça do Miramar, apodrecendo linda e deslumbrada. "Ah, sonhos sempre nascendo/ ah, sonhos sempre a acabar". Saudades do Prédio, que foi meu sem nunca ter sido.