domingo, outubro 26, 2014

Rápido post pós-eleitoral

Hoje cedo, saindo da votação, encontrei na rua uma amiga muitíssimo querida, mais de 40 anos de grande amizade, em alegrias e tristezas. Ela, toda paramentada com as cores da candidatura de sua escolha. E eu, inadvertidamente - ou talvez 'sem querer, querendo' - vestida com as cores da minha, que não era a mesma da minha amiga. Que fizemos? Nos abraçamos, rimos muito, e lembramos a frase do sábio Ulisses Guimarães: política é como nuvem, vive mudando de lugar. Amanhã ou depois todos esses que aí estão atravancando o nosso caminho estarão fazendo alianças e conchavos em Brasília. E nossas amizades da vida real terão sido desfeitas por nada. Por causa de uma nuvem.
Quem sabia das coisas era Michael Jackson: they don't care about us. They really don't.

PS- o jornalista e amigo Márcio Pinheiro me chama a atenção para o fato de que esta frase, 'política é como nuvem', seria de Magalhães Pinto, não de Ulisses Guimarães. Ele deve saber melhor que eu - que de Magalhães Pinto nada lembro, a não ser uma engraçada imitação que Vinicius de Moraes fazia dele, e que consistia simplesmente em colocar os óculos no joelho. Ficava igualzinho!


sábado, outubro 18, 2014

Outono no Rio...

... Primavera com cara de outono de um ano que não tem sido muito fácil para os trabalhadores da cultura. com Copa do Mundo, eleições, e tudo o mais para tirar a atenção das pessoas. As eleições principalmente, um país que parece dividido ao meio, pronto para uma guerra civil sem motivo ou razão. Parece que a direita sequestrou um partido e a esquerda foi sequestrada pelo outro. Irmão desconhece irmão. Um clima pesado de agressões, xingamentos, ódios e rancores como poucas vezes vi. Sempre fomos assim? Não que eu me lembre.

Mas a música sempre salva, e embora os trabalhos andem meio parados em função do que foi dito acima, 2015 será um ano cheio de viagens bacanas - se Deus permitir, e as epidemias e as guerras não se alastrarem totalmente pelo planeta. Temos Europa em janeiro (e possivelmente em maio de novo), Estados Unidos e Canadá em junho, Japão naquela época de sempre e um evento muito especial sobre a minha música em dezembro, na Berklee School of Music, em Boston.

Aqui no Brasil, o plano é lançar o "Rio - Canções Cariocas", meu CD dedicado à minha cidade, previsto pra coincidir com os 450 anos da chegada de Estácio de Sá por aqui. Na Europa e nos USA, na mesma época, sai o "Raiz".  Tudo se encaminha.

E um monte de músicas novas brotando no meio desse caos, que delícia!


sexta-feira, outubro 10, 2014

outra entrevista

Esta entrevista abaixo, feita por Ana Maria Bahiana para O Globo, em 1983, fala do lançamento do meu primeiro disco independente, 'Tardes Cariocas'. E vocês vão ver a interconexão das duas entrevistas através do tempo... Num próximo post vou contar detalhes da minha, enfim, transformação em artista independente mesmo, e um tempo de infinitos perrengues que precisei passar por conta de minhas escolhas.

A casa no Recreio dos Bandeirantes, construída “aos pouquinhos”, à medida que entrava a receita dos direitos autorais é um dos maiores orgulhos de Joyce:

- Fico toda boba quando os amigos me dizem que parece casa de fazenda. Essa era mesmo a idéia. Tem aqueles móveis grandões, de tora de madeira, tem muito quintal. Não quero pôr piscina, nada dessas frescuras. Quero é uma horta, muita árvore frutífera. Estou lá há oito meses e acho uma delícia. É uma casa do tamanho da gente, perfeita para mim, Tuti (o marido, baterista Tuti Moreno) e as meninas (as quatro filhas, uma do casal, uma de um casamento anterior de Tuti, duas de um casamento anterior de Joyce). Se a empregada falta, ninguém se aperta.

O outro orgulho, erigido também com direitos autorais e igualmente aos poucos, é o elepê “Tardes cariocas”, o primeiro trabalho independente desta compositora com quase 15 anos de carreira e escassa discografia. Nele há um repertorio levantado durante um ano e meio de produção, e muitos meses de estúdio, na amorosa troca de passes com os músicos: Fernando Leporace, baixo, Tuti, bateria, Rodrigo Campello, violas e guitarras, Mauro Senise, flautas e saxes e mais um time de convidados especiais no qual brilham as estrelas de Ney Matogrosso, cantando em “Nacional Kid”, e Egberto Gismoti, teclados em “Ela” e “Nuvem”, sanfona em “Baracumbara”. O resultado é o fruto natural desse clima de cuidados – um disco saboroso e íntimo, com delicadezas de arranjo raras de se encontrar em produções “oficiais”, com a conhecida marca de excelente melodista de Joyce, com um humor carioca em boa parte das letras – “Diga aí, companheiro” e “Nacional Kid”, por exemplo, dois alegres comentários sobre as mil faces do nosso machismo moreno – e uma serena reflexão sobre o fluxo da vida e da arte em outra boa parte. 
Essa calma, diz Joyce, é o que mais lhe dá prazer numa produção independente.

- O compromisso de ter de produzir um disco a cada ano é o pior, a meu ver, de um contrato com gravadora. Quando se lança um disco a mobilização é tamanha que não se consegue fazer mais nada. Quando termina tudo, está na hora de fazer outro disco. Para mim, o normal é fazer um disco como eu fiz este – sem pressão de espécie alguma. 

Para lançar “Tardes Cariocas” Joyce vai fazer uma verdadeira festa vespertina no Circo Voador amanhã a partir das 18h30m: primeiro tocam ela e seus músicos, “tudo sequinho, direto” com ênfase no repertório novo: depois “é a festa da canja, sobe quem quiser e o show não tem hora pra acabar”. Já está confirmada a presença de João Donato e Wanda Sá, David Tygel, do Boca Livre, os poetas da nuvem cigana (“vai ser um encontro pra eles, há tempos não fazem nada juntos”), Luli & Lucina, Manoel da Conceição, Claudia Versiani. 
O caráter festeiro e carioca do evento está em sintonia com o próprio espírito do disco na capa, flor no cabelo, sorriso, Joyce deixa ver o morro do corcovado ao fundo: dentro, as músicas estão divididas não em “lado A” e “lado b” mas em “lado de fora” (“o litoral, a beira da praia, esse ilumina a versão carioca”) e o “lado de dentro” (“o Brasil, o interior, o interior das pessoas, também”). E, sem muitas trombetas, em um manifesto de amor so Rio:

- Minha música sempre teve essa característica carioca bem acentuada. Sou do Rio e deixo que o Rio influencie o que eu faço. Achei que estava na hora de mostrar que o Rio tinha sua música, porque eu já estava cansada de um papo de que o Rio não tinha características próprias. Como se só existisse o samba, de um lado e o rock, do outro. Rock pode ter características de Nova York e pode ser tocado no Rio, mas não tem nada a ver com a cidade. Quis que meu disco mostrasse um pouco dessa música do Rio de Janeiro que eu sei que existe. 

“Se o Roberto, gravar sai a quina”
O fato de “Tardes Cariocas” ser um disco independente, custeado pela própria compositora – “gastei o que é muito para mim e pouco para uma gravadora. Não digo quanto porque isso é a base de uma série de negociações que a gente está tendo com algumas gravadoras para distribuir o disco” – através de sua firma produtora a Feminina, não chega a ser propriamente uma bandeira para Joyce. A saída da gravadora Odeon – onde fizeram seus dois últimos discos, inclusive o sucesso “Clareana” – foi um episódio “muito chato”:
- Como um casal em que um descobre que o outro trai, e ai não tem jeito de consertar a relação. Pegaram um playback meu e puseram outra pessoa cantando em cima, num disco de montagem. Sem me consultar. Nada. Ainda ficou difícil manter um bom clima de trabalho. Imediatamente após, vieram outras propostas de outras empresas, mas nada que me desse as condições que eu queria. Então pensei: “Por que não partir para o independente?”

Joyce gastou o que recebia de direitos autorais – só pra citar casos recentes, músicas suas foram gravadas por Gal Costa, Simone, Maria Bethania e Ney Matogrosso – em estúdio e na prensagem de duas mil unidades, boa parte das quais já está prometida à distribuidora francesa Dam que quer colocá- la em diversos países da Europa. Os restantes ela pretende vender em shows, enquanto estuda as propostas de distribuição encaminhadas por várias gravadoras. Este, ela diz é o caminho mais sensato para a produção independente:
- No exterior todo mundo faz isso. Dá até status o artista ter seu próprio selo. É um excelente negocio para as gravadoras, que não gastam nada e ganham tudo em cima. Pelo nível das propostas que recebi, acho que o pessoal aqui já está se tocando disso. O que eu gostaria mesmo seria fazer da Feminina uma produtora de verdade, gravando outras pessoas e usando a distribuição das gravadoras. Acho que seria um bom negocio para todo mundo.
Não afasta, contudo, a possibilidade de assinar um contrato com alguma gravadora, no futuro, desde que lhe dêem as condições que precisa. E acha que está na hora de se reavaliar a produção independente:
- Estou vendo tudo cair num maniqueísmo muito bobo. Como se o mal fossem as gravadoras e o bem os independentes. Não pode ser assim. Eu até nem queria que saísse no meu disco aquela celebra frase, “este é mais um disco independente”. Deveria ser “este é mais um disco” e só. Porque ser independente não garante a ninguém que o disco vai ser bom. A pessoa que ouça e que julgue.
Joyce sente-se a vontade para comentar as formas de produção de discos:
- Há dez anos eu rompi com os esquemas de gravadores porque não concordava com o que queriam fazer comigo, e como resultado fiquei um tempão sem gravar nada no Brasil. Eu queria ser independente desde esse tempo e sempre procurei meus próprios caminhos para trabalhar. Sempre acreditei que não adianta ficar parado reclamando. 

Independente, Joyce tem excelentes relações com nossa aristocracia musical – seu telefone não para de tocar com pedidos de música vindos de estrelas de todas as constelações de nosso cancioneiro. Música de encomenda ela não faz:
- É um processo muito intimo não se pode forçar. Mas às vezes a música sai com a cara de alguém. “Ardente”, por exemplo, eu fiz pensando no Ney Matogrosso. Eu mesma não teria coragem de cantar essa música.
Da nova safra ela tem “Prenda” no disco de Maria Bethânia – era um dos melhores momentos do show do Canecão – “Brilho e paixão” dando titulo ao clipe de Joanna e “Memória” no álbum de estréia de Fafá de Belém para a Som Livre. Como todo ano, ela já fez uma canção para Roberto Carlos – “Casais”, falando “nessa espécie antiquada de relação todo mundo diz que está em extinção.” Se Roberto gravar, ela diz, sua horta no Recreio e mais discos estão garantidos:
- Vida de compositor é feito jogar na Loto. Com Fafá, Bethânia e Joanna eu já fiz um terno, está bom. Se o Roberto gravar, a quina sai pra mim.





quinta-feira, outubro 09, 2014

Uma entrevista

Eis uma entrevista recentíssima que dei à pesquisadora (e boa cantora) Daniela Aragão. É bastante completa e define bem o que eu penso, na música e na vida.

Entrevista com a cantora e compositora Joyce Moreno

Daniela Aragão: Como começou a música em sua vida?
cantoraJoyce Moreno: A minha casa era super musical, um lugar aonde se ouvia muita música. A família toda gostava de música, minha mãe adorava música. Fui criada pela minha mãe, ela criou sozinha a mim e os dois filhos de seu primeiro casamento. Esses dois irmãos com uma diferença grande de idade para mim, o mais velho dezesseis anos a mais que eu e o segundo treze. Se ouvia muita música lá, minha mãe adorava jazz do tempo dela, Tommy Dorsey, Sinatra, coisas de seu tempo. Meus irmãos já eram ouvintes de um jazz mais moderno. Se ouvia muito rádio, muita música e no Rio de Janeiro sempre teve muita música. O carnaval, o samba, ouvia-se música o dia inteiro lá em casa. Esse meu irmão que tinha treze anos quando nasci, começou a tocar violão exatamente nesse período. Então a música para mim começa aí desde sempre. Ele tornou-se músico profissional, depois largou e foi fazer carreira no Banco do Brasil. No final de minha infância e adolescência ele era músico profissional, embora estudasse e fizesse outras coisas também. Ele era amigo do Menescal, que tinha sido seu colega de colégio e do pessoal da Bossa Nova, de Luís Carlos Vinhas, Eumir Deodato. Essas pessoas frequentavam a minha casa. Meu irmão saía a noite com seus amigos e ia ao Plaza, onde tocava Johnny Alf e chegava em casa no outro dia entusiasmado para tirar as músicas. "Rapaz de bem" e outras músicas de Johnny ele tirava no violão. Então quando lançaram "Garota de Ipanema" eu já conhecia a música, pois os amigos de meu irmão já tocavam ela lá em casa antes de ser gravada. Tive contato com tudo isso sendo uma piralha de onze, doze anos. Eu via tudo acontecendo ao meu lado ao vivo e a cores.
Daniela Aragão: Você fez jornalismo não é?
Joyce Moreno: Sim, fui fazer jornalismo. Comecei a tocar violão com quatorze anos pegando o violão de meu irmão que não queria me dar aula. Fui a princípio só tentando copiar os acordes e assim aprendi sozinha. Com dezoito anos, momento em que entrei na faculdade, fui estudar também violão clássico. Estudei com Jodacil para fazer o negócio direito. Eu já tocava bem, mas tecnicamente estava tudo errado. Fui ser aluna dele justamente para isso, para colocar as coisas no lugar. Fiz a faculdade de jornalismo, fui para a Puc e me formei, mas isso era meio um plano B. A profissão de jornalista não era o que mais queria, mas fui estagiária no Caderno B do Jornal do Brasil, que se tornou uma experiência incrível. Era o que todos os meus colegas sonhavam conseguir, fui lá, batalhei e consegui. Estava me dando super bem, mas aí veio o festival e tive uma oferta de contrato para gravar o primeiro disco e então acabou o jornalismo. Parti para a música, que era o que eu queria mesmo.
Daniela Aragão: A compositora também floresceu junto com a instrumentista e cantora?
Joyce Moreno: Era sempre uma coisa só, sempre compus desde criança. Quando estava no colégio e tinha que gravar as matérias de decoreba, musicava tudo. Chegava na hora da prova estava com tudo na cabeça, pois tinha posto música. Sempre pensei em compor, quanto à história de compor no feminino, isto se tornou uma confusão quando veio a aparecer. Isso aconteceu porque não era uma coisa que se fizesse, não era considerado apropriado uma mulher fazer isso. Tinha um ranço muito machista na música popular brasileira, como existiu até muito pouco tempo. Acho que só agora está começando a abrir tudo realmente em todos os níveis. Uma escalada progressiva, primeiro a questão das letras no feminino que eu fazia e as compositoras não. Em seguida veio a questão da instrumentista associada a aquele papo "ah você toca violão como homem", como se fosse um elogio dizer que tocava bem, pois não era previsto que uma mulher tocasse bem. Depois a questão de ser band leader, liderar um grupo de homens, tocar com músicos e tal. Então todos esses degraus tiveram que ir sendo cumpridos, uma etapa de cada vez. Hoje em dia fico feliz por saber que não há mais esse tipo de barreira. Mulheres instrumentistas, mulheres compositoras, mulheres fazendo tudo, é isso aí.
Daniela Aragão: Ao compor na primeira pessoa e assumindo o eu feminino você sentia que havia algum impedimento?
Joyce Moreno: Eu não tinha a menor ideia, achava ridículo as cantoras gravando as músicas tendo que transpor as letras dos homens para o feminino. Quando as compositoras compunham ficava uma coisa toda neutra, ninguém falava de si mesmo. No entanto alguns homens já compunham no feminino como Assis Valente e Chico Buarque mais recentemente. Eram homens compondo como mulheres e as mulheres não faziam. Então comecei a compor, mas para mim era uma coisa muito natural, eu tinha dezoito, dezenove anos quando comecei a fazer essas músicas mais explícitas. Com dezoito anos e totalmente inocente, achava que isso era uma coisa normal. Foi um escândalo quando o disco saiu e cantei no festival, a repercussão toda que teve para mim foi um susto. Eu compunha com naturalidade e espontaneidade.
Daniela Aragão: Você ficou sendo por um bom tempo uma espécie de "porta voz" do feminino. Mais tarde acabou compondo em parceria com Ana Terra "Essa mulher", uma canção que veio a ser gravada por Elis Regina e deu título ao disco dela de 1979.
Joyce Moreno: Dentro ainda da fase inicial há músicas como "Feminina", que é exatamente a discussão do feminino, o que é ser feminina. Isso para mim também era uma questão, porque minha mãe achava que eu não era feminina. Passei a infância e a adolescência ouvindo minha mãe dizer que eu não era feminina, pois eu não gostava de maquiagem, salto alto, essas coisas que as outras meninas gostavam. Eu gostava de leitura, de nadar, pegar onda, era um outro mundo. Acho que ela tinha muito medo de que eu não obedecesse aos seus padrões, mas só que o abismo de gerações era muito grande naquela época, diferente do que é hoje. Converso qualquer assunto com o meu neto, mas naquela época você não conversava qualquer assunto com a mãe, era um abismo realmente. Acho que foi a nossa geração que quebrou, construiu essas pontes e dinamitou as anteriores. Derrubou os tabus todos, as prateleiras. Então a música "Feminina", que também fiz sem pensar, muito pela sonoridade que ela me sugeria, acabou falando muito explicitamente disso. Volta e meia ainda faço, embora hoje em dia com menos empenho nessa causa. Acho que já está bastante falado tudo isso, naquele momento foi importante falar isso.
Daniela Aragão: Você no decorrer da carreira foi trazendo um intenso diálogo com o jazz e despontou com sua música no exterior. Como se deu a descoberta de sua música lá fora?
Joyce Moreno: Isso aconteceu em várias etapas. Houve um primeiro ensaio, quando fiz um disco com produção do Claus Ogerman e que nunca foi lançado. Fui para Nova York com Maurício Maestro, estávamos tocando juntos e fomos nos apresentar numa casa noturna lá. Uns lances que fazíamos foi mostrado ao Claus Ogerman em 1977, ele se interessou muito. Foi exatamente quando conheci o Tutty, que já morava lá há três anos. Gravei um disco lindo com as cordas, produção e direção de Claus Ogerman e que nunca fui lançado. Outro dia postei uma faixa deste disco, a única que foi disponibilizada, pois o Claus nunca quis. Várias gravadoras se aproximaram dele para lançar o disco e ele não quis e cobra fortunas. Não sei porque ele guardou. Eu estava lá e teria certamente ficado, mas voltei porque minhas filhas mais velhas tinham permanecido no Brasil, a Clara e a Ana. Depois tive a Mariana com o Tutty. Clara ficou doente e necessitei voltar correndo e consequentemente abandonei a história toda lá. Acabou então que o tal disco não saiu, mas foi já uma primeira incursão no exterior. Em 1985 tive o primeiro convite para me apresentar no Japão e isso deu início a uma história de relacionamento estável com o público japonês que dura até hoje. Em 1988 fui para a Europa fazer meus primeiros shows, embora já tivesse antes ido com Edu Lobo. Em 1989 tive um convite da Verve para gravar um disco, na verdade devido ao fato de que o meu trabalho já estava circulando no exterior e as pessoas ouvindo e tomando conhecimento. Saía muita coisa lá fora na imprensa sobre mim, então não foi algo que aconteceu de repente, foi um processo lento que foi acontecendo aos poucos. São anos e anos de circulação do trabalho lá fora de várias maneiras. No início dos anos 90 os meus discos do início dos anos 80 foram descobertos por uns DJs de Londres e aí o negócio explodiu, ganhei o público jovem que começou a curtir o swing das músicas. Botavam na pista para dançar e foi uma outra onda que aconteceu e muito bacana, o que eles chamavam de Acid jazz. Hoje em dia tenho uma situação bastante estável dentro desse mundo do pessoal que curte música brasileira e ao mesmo tempo jazz. É um público de música brasileira mais criativo digamos, ninguém vai te chamar para tocar no Brazilian Day lá, mas no Jazz Lincoln Center sim. Não é nada que aconteceu subitamente, de repente, é resultado de toda uma construção e que ao mesmo tempo fui sendo convidada, as pessoas vieram me chamando. Não corri muito atrás disso.
Daniela Aragão: Você é casada com o músico Tutty Moreno, aliando o trabalho a vida afetiva vocês geram belos e surpreendentes trabalhos.
Joyce Moreno: Bom, é o seguinte: eu não falo muito sobre isso, porque são coisas meio íntimas, mas... Ele é um super músico, e não sou eu dizendo, mas a geral... Ele tem um lance de tocar 'para a música' que poucos bateristas têm, uma sutileza, uma coisa de transformar a bateria num instrumento harmônico e melódico - ele ouve o que os outros músicos estão tocando, e toca de acordo, interage musicalmente, não é só manter o andamento e o tempo, é fazer música mesmo. Então quem é do ramo e conhece, fica doido pra tocar com ele. É criação rolando direto, sem previsão, tudo muito livre, muito solto, bom demais.
E a gente começou assim, eu me apaixonei pelo som dele e ele pelo meu. E fomos construindo um lance juntos ao longo do tempo, além de casamento e família, mas tem uma linguagem musical que construímos juntos. Já são 37 anos de vida e música juntos.
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Joyce ao lado de Hermeto Paschoal e Egberto Gismont
Daniela Aragão: Você também está constantemente gravando e dialogando com grandes músicos como Toninho Horta, Dori Caymmi, Edu Lobo, Tom Jobim e João Donato.
Joyce Moreno: Gravei três discos com o repertório de Tom Jobim. O primeiro com canções de Tom, tive o texto de capa do próprio e arranjos meus e de Gilson Peranzzetta. Isso foi quando Tom estava fazendo sessenta anos. Logo quando ele morreu fiz um trabalho de duo com Toninho Horta chamado "Sem você". Todos esses são dedicados a obra do Tom, que a meu ver foi um mestre total para a minha música e de toda a minha geração. Quando o meu trabalho começou a funcionar, as portas abrindo lá fora, correspondeu exatamente com o momento em que as portas estavam se fechando aqui. Foi uma coincidência feliz, pois ao mesmo tempo em que começava a me tornar uma artista independente e tomar as rédeas da minha vida musical e profissional, a coisa começou a ficar esquisita para a música que eu fazia, para a música brasileira. Se tivesse ficado no lugar em que estava, "Clara e Ana", programa de televisão, fazer música para tocar na novela, estaria algemada, isso algema o artista. O artista acaba tendo que criar pensando toda vez naquilo, fazendo o que a gravadora quer. A minha escolha foi bem pela liberdade.
Daniela Aragão: Você possui total autonomia para a realização de seus trabalhos?
Joyce Moreno: Total, só faço o que estou afim. Os produtores que trabalham comigo são excelentes e sabem que quando o artista sabe o que quer fazer, não há a menor necessidade de que alguém fale: " faça assim, faça assado". Nessa hora o grande produtor é aquele que deixa o artista ser o que ele tem de melhor.
Daniela Aragão: Você segue com uma banda fixa faz bastante tempo não é?
Joyce Moreno: Não é mais aquela "Banda Maluca", que só tinha eu como instrumento de harmonia, compondo o centro com meu violão acrescido de baixo, bateria e dois sopros. Ela ganhou esse nome, pois era uma formação meio maluca mesmo, só tinha um violão no centro e tudo acontecendo ali em volta. Hoje em dia trabalho com um quarteto, eu de violão e um trio composto por piano, baixo e bateria. São músicos de altíssima voltagem criativa todos. Para trabalhar nesse circuito, para fazer o tipo de trabalho que faço, não dá para ser músico funcionário, nem taxista. Tem que mergulhar na criação com você, correr o risco musical junto, ou seja, todo mundo ali é artista. Tanto que não falo nunca a expressão "meus músicos", não sou dona de ninguém. Sou casada com um músico e não falo meu músico, meu baterista, posso falar meu marido, que é outro departamento. Acho que não funciona assim, estamos numa aventura musical juntos e todo mundo que toca comigo sabe disso. Por isso sou muito chata na hora de escolher e de convidar, pois tem que ser alguém que tenha esse tipo de coragem e atrevimento musical. Tem que chegar e tocar mesmo, pois vai entrar no fogo.
Daniela Aragão: Você possui uma discografia impecável, um de meus prediletos é o "Slow Music".
Joyce Moreno: Também adoro esse disco, fiquei dez anos pensando nele, que é composto de baladas, é um disco de amor. Mas eu não queria uma coisa bobinha, canções de amor água com açúcar, "boy meets girl". Eu queria um negócio que tivesse um certo agridoce na história, que elas tivessem uma certa pontada de humor.
Daniela Aragão: Você diz que a ideia surgiu a partir de um manifesto.
Joyce Moreno: Foi o manifesto da "slow food", que é um negócio que começou na Itália, mas que hoje é um movimento mundial. Foi um italiano que começou chamado Carlo Petrini, quando abriram o primeiro Mc Donald's em Roma. Ele escreveu um texto dizendo que achava um absurdo a comida se transformar nisso. Daí começaram a ter vários movimentos como o "slow life". Então pensei em fazer um disco a partir dessa ideia, a música para ser fruída, degustada, tocada com muita calma. A gente engole muito lixo musical no dia a dia e isso é a dieta musical do brasileiro.
Daniela Aragão: Você já fez alguns discos temáticos, homenageou Elis, fez parceria com Dori Caymmi em "Rio Bahia", gravou com João Donato, enfim, a nata de nossa música. Há algum artista ou projeto ainda no âmbito do sonho?
Joyce Moreno: Não sei, no momento não penso. Acabei de gravar um disco para o Japão e não sei quando vai sair aqui no Brasil. Me pediram um disco novo, o último foi o "Tudo", totalmente autoral, somente canções minhas. Acho que um disco autoral não faria tão cedo, pois leva um tempo para maturar as canções, juntar o bouquet, para elas se juntarem umas as outras certinho. O pessoal do Japão lembrou que estava fazendo cinquenta anos de minha primeira entrada em estúdio, na verdade não era cinquenta anos de carreira. Eu era adolescente e o Menescal, que era muito amigo de meu irmão, ouviu uma fitinha que eu tinha gravado em casa aos quinze anos. Ele gostou e me convidou para cantar num quarteto vocal que estava produzindo para uma gravação. Essa foi a minha primeira experiência em estúdio. A pergunta era o que eu ouvia quando tinha quinze anos de idade, fiz então um disco todo baseado nisso. Então tem muita bossa nova e também outras coisas misturadas. O disco se chama "Raíz" e é todo sobre isso.
Daniela Aragão: Me chama atenção a qualidade de seu violão, poucas cantoras se acompanham como você.
Joyce Moreno: Eu não sou cantora, sou músico. É outra prateleira. Cantora é outra coisa e o Brasil tem cantoras espetaculares. Tem algumas que estão entre as grandes cantoras do mundo, eu não faço parte desse mundo das cantoras e dos cantores. Faço parte de um outro mundo, que é um mundo de músicos, compositores. Tudo é um pensamento musical meu que expresso de várias maneiras, seja compondo, tocando ou cantando. Essas coisas são expressas através dessas ferramentas que possuo, do canto, do violão, da composição. Eventualmente um arranjo que faço, pois todas as canções que crio organizo da maneira que quero, orquestração não sei fazer, mas arranjo faço. Então trabalho muito com esse pensamento. Não se trata de um trabalho de cantora, de intérprete, embora eu faça isso também dentro do meu universo, mas é outra coisa. Adoro Dori cantando, é uma de minhas vozes preferidas, mas se você lhe perguntar se é cantor, certamente ele vai dizer que não. O que Dori faz é outra coisa, inclusive ele é um orquestrador. São outros universos.
Daniela Aragão: Puxando essa questão do "pensar a música", que de fato é o que dá mais conta de abarcar sua amplitude musical, gostaria que você falasse um pouco do programa "Cantos do Rio", idealizado por você.
Joyce Moreno: Criei vários projetos musicais para a "MultiRio", que é a empresa de multimeios da prefeitura do Rio de Janeiro. Um deles foi o "Cantos do Rio", onde eu era a apresentadora e ia com o meu violão na casa das pessoas e nos bairros onde os compositores, cantores e artistas moravam. Eram cantos do Rio mesmo, um percurso que objetivava mostrar como o Rio de Janeiro interfere na música das pessoas e as pessoas com suas músicas na cidade. Então fui a casa do Hermeto Paschoal em Bangú, ao estúdio do Menescal na Barra, a casa de Edu Lobo em São Conrado. Conversei com Carlos Lyra na "Toca no Vinícius", andei no Leblon com Elton Medeiros, fui na Mangueira, Serrinha, enfim, todas essas andanças faziam parte do programa. Depois fiz um outro projeto chamado "No compasso da história", que consiste na história do Brasil contada através da música. Foram quinze documentários de uma hora cada um, cada episódio falando de um período histórico do Brasil. As músicas apresentadas se referiam a esses períodos históricos, começa lá atrás nos índios. Os mais recentes que fiz passaram ou só no canal da Multi Rio ou então na TV Bandeirantes, ficou mais restrito ao Rio de Janeiro mesmo, não teve um alcance mais amplo. Agora irei fazer mais uma temporada de um outro programa criado por mim que se chama "Os pequenos notáveis" . Neste, eu e meu parceiro no projeto Alfredo Del Penho falamos sobre a infância de grandes compositores brasileiros como Vinícius de Moraes, Dolores Duran, então tem o pequeno Vinícius, a pequena Dolores, o pequeno Zé Kéti, o pequeno Braguinha. Vai então mostrando como eram essas pessoas quando crianças e como elas descobriram a música e foram chegando.
Daniela Aragão: Você trabalha junto com pesquisadores?
Joyce Moreno: Sempre trabalhamos, há uma equipe muito bacana da própria Multi Rio. Na série "O compasso da história" a pesquisadora foi a Heloísa Tapajós. Tinha a equipe de pesquisa histórica e iconográfica também. No "Pequenos notáveis" o pesquisador é o Pedro Paulo Malta e o Alfredo Del Penho que divide comigo os programas. Ele faz uma dramaturgia com as crianças, conta histórias e junto levamos a parte musical. Então todos esses anos estou envolvida com a educação musical de uma maneira muito discreta, criando esses projetos. Acho que é preciso levar ao conhecimento das crianças essas coisas.
Daniela Aragão: Você escreveu o livro "Fotografei você na minha Rolleiflex". Rodando o mundo, tomando contato com tantas culturas, pinta a vontade de escrever uma espécie de livro relato?
Joyce Moreno: Tenho alguns projetos, entre eles um livro pronto o qual não me animei a fazer nada ainda, este é de contos, ficção. Tenho projetos, mas falta tempo para fazer tudo. É complicado, pois passo muito tempo na estrada. É difícil, para você sentar e escrever é preciso um tempo e concentração.
Daniela Aragão: Suas duas filhas Clara e Ana são cantoras também.
Joyce Moreno: Clara e Ana são, Mariana não. Clara é cantora profissional, vive disso e em função disso. Trabalha em São Paulo, está gravando disco novo. Ana é cantora também, gravou alguns discos que saíram no Japão. Aqui saiu um pela Biscoito Fino, o terceiro disco dela chamado "Samba sincopado". Agora ela está trabalhando numa web rádio, apresentando e criando programas. Mariana mora na Alemanha, é mãe, super mãe. Ela é designer, mas resolveu ser uma super mãe.
Daniela Aragão: Já gravou com suas filhas, ou cada uma tem um trabalho e uma vertente?
Joyce Moreno: Cada uma tem um trabalho e uma vertente, já participei de discos delas e elas dos meus. Sempre tivemos uma inteiração musical muito grande.
Daniela Aragão: E os projetos atuais?
Joyce Moreno: O "Raíz", que é o último disco já saiu no Japão e vai sair na Europa no início de 2015. Estou resolvendo com a gravadora Biscoito Fino qual dos dois projetos que irei lançar aqui no Brasil. Tenho dois discos para lançar e estou resolvendo qual deles.
Daniela Aragão: Dois discos prontos?
Joyce Moreno: Tenho muitos discos que nunca saíram no Brasil, estes dois são recentes. Talvez por aqui saia o "Raíz". É uma questão de aparar arestas entre gravadoras, como o produto é meu tenho essa liberdade de ir acertando.
Daniela Aragão: Como você vê a sua musica em seu país?
Joyce Moreno: Acho que a minha música no meu país cumpre muito a função de estimular novas gerações de músicos a fazer a música deles. Vejo isso acontecer, recebo muita coisa bacana de músicos jovens que estão tocando as minhas músicas, que estão criando a partir do que a minha geração criou. Se você falar em massa, a minha música não tem função nenhuma, pois a função da música hoje em dia é ser música de massa. Eu diria que a grande maioria do povo brasileiro nem faz ideia do que a gente faz e nem sabe que a gente existe. Complicado tentar definir o lugar em que a gente vive. Não é um gueto, não é underground, é uma outra coisa, a gente vive num espaço em que a grande maioria das pessoas não tem acesso. Não tem acesso, pois não temos a música paga para aparecer no rádio ou na televisão. É uma coisa só de quem está muito afim e vai procurar e essas pessoas são as que estudam música, que se interessam por música e que vão buscar esse tipo de informação. Caso contrário não tem. Por isso faço tanta questão de realizar e alavancar esses projetos educacionais para botar pelo menos na minha cidade um pouco de informação. É isso aí.
Fotos: Myriam Vilas Boas e arquivo pessoal

Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.