terça-feira, dezembro 24, 2013

O Brasil jogado fora

Um texto bacana de Hugo Sukman, para nos fazer refletir.

O Estado da arte
Convidado da semana Hugo Sukman, jornalista e crítico

Doce anomalia

O crítico e jornalista Hugo Sukman expõe tese de que a MPB está restrita ao gueto

A MPB foi uma doce jabuticaba. Ou, em termos menos poéticos, uma maravilhosa anomalia. Enquanto a chamada música popular definhava no mundo inteiro a partir da varredura estética promovida pelo rock americano nos anos 1950 e pelo rock inglês nos anos 60, a música brasileira insistia solitariamente em manter e desenvolver sua vertente popular. Assim mesmo: po-pu-lar, três sílabas complexas, e não a sua corruptela monossilábica — pop —mais direta, pragmática, globalizada. Depois de Elvis e Beatles, a arte de Charles Trenet na França, de Ernesto Lecuona em Cuba, de Cole Porter nos EUA, ou de um Ary Barroso no Brasil — ou seja, a música popular — parecia condenada à extinção, substituída primeiro por clones locais de Elvis e Beatles (alô Jovem Guarda) e depois por variantes da música jovem mundial: BRock, funk carioca, hip-hop paulista, axé, gospel, sertanejos de inspiração folk e country, tecnobrega e assim por diante.
Acontece que no Brasil desenvolveu-se a jabuticaba, doce e única, a tal da MPB. Não se sabe como: se pela força cultural e musical do samba; se pela sólida base do choro; se pela capacidade da bossa nova de pegar o vácuo da decadência da canção americana; se pela herança de Villa-Lobos que germinou em Tom, Baden, Edu, Dori, Gismonti, Toninho Horta, Guinga; se pelo fato de nosso grande ídolo pop-popular, Luiz Gonzaga, ter sido um grande inventor; se pelo gênio de Caymmi e de Vinicius; a graça e a musicalidade de Elis e das grandes cantoras; se por uma geração insuperável de artistas se dedicar justamente à música popular: Chico, Paulinho, Caetano, Gil, Milton, Francis, Aldir, PC Pinheiro, Joyce, João Bosco, Ivan Lins e tantos mais; se pelos reinventores do samba, Martinho, Candeia, Monarco, Elton, Mauro Duarte, Beth Carvalho, Alcione, Wilson Moreira, Nei Lopes; se pelos inventores do Nordeste, Fagner, Belchior, Alceu, Geraldo Azevedo, Morais, Pepeu; e os reinventores do sertão, Renato Teixeira, Almir Sater; se pela criatividade dos bregas; se pela vanguarda de Hermeto, Arrigo e Itamar; se por uma geração de seguidores de Radamés, Moacir Santos, Luiz Eça; se pela associação inicial com rádio, disco e TV, a indústria cultural toda trabalhando a favor.
O fato é que por 50 anos essa geração conseguiu transformar a música popular brasileira em algo criativo e de altíssimo nível estético, mas de fato popular; inegavelmente brasileira e de circulação internacional; que gerava teses acadêmicas e era assoviada nas ruas; que não fazia grandes concessões ao mercado e era sua grande estrela de vendas; que fazia parte da intimidade sentimental dos brasileiros e era porta-voz artístico da nacionalidade, da resistência política à gestação de vanguardas.
A MPB foi, muito provavelmente, a única linguagem artística moderna inteiramente gestada no Brasil e não caudatária, como todas as outras, de matrizes europeias e americanas. Por isso, hoje soa tão estranho quando, no programa “The Voice Brasil”, depois de ouvir alguém cantando a obra-prima “Resposta ao tempo”, feita anos atrás por Cristóvão Bastos e Aldir Blanc para a abertura de uma novela (hoje isso parece impossível), Lulu Santos comenta: “É impressionante como a verdadeira MPB nos aproxima das palavras.” O simpático comentário denota algo de fato estranho: aquela seria a “verdadeira MPB” de um programa musical feito por brasileiros, mas que na forma é dominado por técnicas musicais da soul music americana e no conteúdo traz música estrangeira ou os gêneros brasileiros globalizados. Assim como soa estranho o fato de que entre as 50 músicas mais tocadas nas rádios brasileiras não haja sequer uma “verdadeira MPB”, lista liderada por sertanejos (Bruno & Marrone, Luan Santana) e funk carioca (Anitta, Naldo).
Ou soa ainda mais estranho que numa recente pesquisa do Ibope sobre o gosto musical do brasileiro, o público de MPB apontar Ana Carolina como sua preferência, cantora e compositora de qualidades evidentes mas com uma linguagem pop, descolada da estética emepebista (e quando a abraça, o faz de forma simplificadora, vide seu “Retrato em branco e preto” ou “Beatriz”).
Num outro sintoma, ninguém estranha quando Guinga e Francis Hime são escolhidos para encerrar o Festival Villa-Lobos de 2013 — a música criativa brasileira se aproximando cada vez mais das características geralmente associadas à música clássica, de plateia atenta e restrita. Ou que um Arrigo Barnabé, grande renovador da MPB nos anos 80, hoje se dedique mais a fazer óperas do que canções.
Tal retrato encerra aspectos positivos, como a ascensão ao mercado de consumo de classes desprezadas: das favelas cariocas e seu potente e criativo funk, aos brasileiros do interior que não têm mais vergonha de serem “caipiras” pois, se nos EUA ambos os gêneros são o mainstream, por que não no Brasil? Os aspectos negativos, contudo, também são eloquentes: o baixo nível educacional espelhado pela nova música brasileira, e a vitória de uma campanha feita há décadas para “atualizar” a música jovem brasileira em relação à música jovem mundial.
Enquanto isso, a chamada MPB (na falta de nome melhor) anda nas alcovas, nos becos, nas bocas, nos botecos, de volta ao underground de onde saiu há uns cem anos. Ela está, por exemplo, numa nova e faminta geração de compositores, intérpretes e instrumentistas na faixa dos 30 anos que circula quase despercebida, rara na mídia — e que busca estar perto dos artistas consagrados, aprendendo e levando à frente uma linguagem artística reverenciada no mundo todo, mesmo com eco rouco no Brasil. Está nas escolas, como a Escola Portátil de Música do Rio, na qual mil alunos todos os semestres exercitam e renovam gêneros como o choro e o samba, levando-os para a vida e o mercado (a este a duras penas). Ou na escola espalhada pela dunas e areias do Ceará e mantida pelo Festival de Choro e Jazz de Jericoacoara, que todo ano conjuga música e formação de músicos e plateias num canto afastado do país — entre tantas outras iniciativas heroicas.
A MPB está, inteira, na obra de Dori Caymmi, que aos 70 anos vem compondo como garoto, lançando CD atrás de CD para ouvintes jovens e ávidos. Na verdade, é o maior compositor numa linguagem que o Brasil inventou, que o distingue entre as nações, mas que parece querer jogar fora, desperdiçar (como faz com a floresta, com a água, com gente, com tanta coisa). Não se trata de uma mensagem preservacionista ou, pior, reacionária — funk, arrocha e brega são gêneros potencialmente renovadores e divertidos, que mostram a vitalidade musical do Brasil — mas de perceber a marginalização artificial de uma linguagem nossa. Jogar fora essa única linguagem inventada no Brasil: é isso que se quer?      


quinta-feira, dezembro 19, 2013

Prévia

Vai terminando 2013, ano que foi dos mais produtivos pra nós: fizemos duas turnês na Europa, mais duas idas aos Estados Unidos e uma ao Japão. O meu amado "Tudo" foi bem recebido em todos os lugares por onde passou - inclusive aqui no Brasil, o que pra mim é sempre a maior de todas as alegrias. A família vai bem, com saúde, enfrentando as situações normais da vida dentro do possível. E vamos que vamos, que um novo ano já desponta logo ali.

As prévias para 2014 (não as eleitorais, que destas não faço a menor idéia, nem quero) apontam para um mês supostamente de férias em janeiro. Digo 'supostamente' porque, na verdade, será um tempo de preparação para alguns próximos trabalhos. Logo no início de fevereiro, irei fazer uma releitura do repertório do show Opinião, que completa 50 anos: o Instituto Moreira Salles convidou - a mim e à excelente rapaziada do Casuarina - para apresentarmos as canções que Zé Kéti, João do Valle e Nara Leão imortalizaram naquele momento, quando o Brasil recém-sofrera um golpe militar e tudo iria mudar. É um rico buquê de canções, sambas, baiões e até a 'Guantanamera' cubana (que no disco gravado ao vivo está creditada a Pete Seeger, vejam só... Esses americanos…) Tudo indica que será divertido e interessante remexer neste passado.

Logo em seguida temos o projeto de um novo CD, para o qual já estou me preparando. É, como sempre, mais uma encomenda do Japão. E desta vez, como ainda não estou pronta para um novo CD de inéditas, vou buscar no fundo do meu baú as novidades da minha adolescência. Pois vejam: os japoneses lembraram que em 2014 se completam 50 anos desde que entrei num estúdio pela primeira vez. Eu tinha 16 anos incompletos, e fui convidada por Roberto Menescal, amigo do meu irmão mais velho, para ser a primeira voz num quarteto vocal que ele estava organizando, para gravar as músicas do bossanovista mineiro Pacífico Mascarenhas. Foi minha primeira vez, e desta, ninguém esquece…

Minha idéia, então, já que o Japão quis comemorar esta data, é gravar as canções que a adolescente de 15/16 anos ouvia naquela época. Eu já tocava violão nas festinhas, e ganhei o honroso apelido de "Joyce Bossa-Nova" - pois era esta o forte do meu repertório naquela época . Pois então, bossa-nova será. Muito Tom, Vinicius, Johnny, Menescal, Carlinhos, os caras. Os meus caras.


domingo, dezembro 08, 2013

Na África do Sul

A morte de um verdadeiro estadista como Nelson Mandela mexe com o imaginário das pessoas. A mim, particularmente, traz lembranças de uma das viagens mais incríveis que já fiz na vida, e olha que foram muitas: em 2000, estivemos tocando em Johannesburgo, na África do Sul.

(Na foto acima estou lá, com a grande diva sul-africana, a cantora Sibongile Khumalo, e o músico e produtor, igualmente respeitado e amado em seu país, Cypho 'Hotstixs' Mabuse, no Kippie's Jazz Club. Os dois tinham no repertório a nossa 'Mistérios', na versão em inglês que fiz pra gravar nos Estados Unidos)

E como chegamos à África?
Pois muito bem: no ano 2000, fui convidada para participar do Arts Alive Festival, que reunia artistas de todo o continente africano, como representante do Brasil, país que naquele ano os organizadores queriam homenagear, como grande exemplo da diáspora africana pelo mundo. A (in)correção política de tal escolha não chegou a ser um problema. Até hoje não sei definir a que etnia/raça pertenço. E me alegrou saber que a escolha se deu pelo som de minha música, e não por qualquer outra razão. Fui com meu grupo para Johannesburgo, e em outras cidades do país se apresentaram Beth Carvalho com seus músicos, representando o samba, e o trio de Hamilton de Holanda, pelo choro.

Já na chegada, as duas simpáticas mocinhas indianas da produção que nos receberam tiveram que responder às nossas indiscretas perguntas: como seríamos classificados racialmente, caso ainda houvesse o apartheid no país? Elas nos examinaram detidamente e foram dando as classificações prováveis. Teco Cardoso e Mauricio Maestro: brancos; nossa então produtora Beth Bessa, mulata, foi classificada como "colored". Eu e o Tutty: inclassificáveis. A nossa morenice de famílias mistas, carioca no meu caso, e baiana no caso dele, confundira nossas duas anfitriãs. Confesso que nos sentimos de fato representando o Brasil, com nossa 'exótica' mistura de tonalidades de pele. É bom lembrar que no tempo do apartheid os casamentos mistos no país davam cadeia. Portanto seria preciso esperar mais uma geração ou duas, para que cores como as nossas, tão naturais no Brasil, começassem a aparecer por lá.

Fiquei encantada com tudo: a arte, a cultura, a música, as pessoas, embora fossemos firmemente desaconselhados a sair à rua sozinhos. O adido cultural brasileiro, que também nos recebeu com enorme gentileza, em dado momento nos contou que os problemas de segurança por lá eram terríveis, e não necessariamente por causa dos cidadãos sul-africanos, mas pelo excesso de imigrantes dos países vizinhos, quase todos envolvidos em trágicas guerras civis, como Serra Leoa. Ele nos contou que 90% da população andava armada no dia-a-dia, mesmo em supermercados e shoppings, e que não havia uma semana em que o consulado não recebesse pedidos de ajuda de brasileiros assaltados ou brasileiras vítimas de estupros. Ficamos bastante impressionados, mas Mauricio Maestro quis tirar a dúvida e saiu sozinho a pé pelo centro da cidade, certa tarde. Voltou incólume. Talvez o adido tivesse exagerado um pouco. Ou não? Tínhamos um motorista conosco durante todo o tempo (que depois descobrimos que na verdade trabalhava como modelo fotográfico e estava ali fazendo um bico), e fomos aconselhados a só sair acompanhados por ele. A certa altura notamos que ele de fato levava uma arma na cintura, discretamente.

Tutty foi convidado por um músico local a tocar bateria em duas faixas de seu novo CD. Antes da gravação começar, este músico (cujo nome, infelizmente, esquecemos) o convidou a passar em sua casa, tomar um café e conhecer a família, esposa e filhas. Era uma residência confortável, num simpático bairro de classe média. Todas as casas em volta, sem exceção, tinham avisos de que estavam protegidas por alguma firma de segurança. E a casa em questão era totalmente gradeada - por fora e por dentro, entre um cômodo e outro. Seria isso normal? tudo indicava que sim, e que as pessoas estavam acostumadas a viver dessa forma. O fim dos conflitos raciais era ainda muito recente.

Imagino que as coisas tenham mudado a partir desse tempo, e que já se viva com mais harmonia e menos medo naquele país de que tanto gostamos - e olha que de Johannesburgo não saímos, a não ser numa rápida excursão ao Pillasnsberg Park, onde pudemos ver os big five em seu habitat natural, de grande beleza, e onde cometemos a imprudência de sair do carro para fotografar um bando de cervos que passava - bem na hora do almoço dos leões. Felizmente, parece que não fomos vistos. Mas os guardas do parque viram, e nos chamaram a atenção energicamente. Levamos uma bronca e tanto.

O melhor de tudo foi o workshop que fizemos em Soweto, o famoso bairro barra-pesada de Johannesburgo, de onde brotaram os grandes protestos que culminaram com o fim do regime. Nossos amigos Sibongile e Mabuse eram (são) filhos do local. E ele, mesmo tendo se tornado rico e famoso, fazia ainda questão de não sair do seu bairro de origem, para, segundo ele, dar o exemplo e servir de referência para a garotada local. Vale dizer que sua casa era mesmo uma referência de bom-gosto, com peças de arte belíssimas, vindas de todo o continente africano. O conservatório de música, por outro lado, carecia um pouco de tudo. Mas não de criatividade. A certa altura, quando estávamos tocando no centro da pequena arena, os alunos começaram a descer das arquibancadas, cantando, dançando e tocando suas marimbas para interagir conosco. Foi um momento emocionante, impossível de esquecer.

Depois a garotada nos crivou de perguntas sobre a música brasileira, e falou-se muito em Antonio Carlos Jobim. Segundo Mabuse, o homem que mostrou a identidade brasileira ao mundo, e que certamente seria amado e reverenciado em seu próprio país… Essa parte, preferi não esclarecer muito, para não decepcionar nossos amigos. Nem quando fui fazer o programa de TV 'Good Morning Africa', às seis da manhã do dia seguinte, e me perguntaram a mesma coisa. O Brasil pode não conhecer o Brasil, mas o mundo conhece a melhor música brasileira. E isso me consola.


domingo, dezembro 01, 2013

songbook

Pois então, vira e mexe, rola uma cobrança a respeito deste assunto. O desejo de ter um songbook com minhas canções escritas corretamente, com as harmonias certinhas, para que músicos do mundo todo possam usufruir e se divertir tocando, me acompanha há décadas. Quero muito, mesmo, demais. Mas ainda não foi possível organizar isso direito.

O principal motivo, claro, é o financeiro. Esta é uma empreitada que tem custos. Não tenho habilidade suficiente para fazer eu mesma, e precisarei contratar alguém que faça. De preferência alguém que conheça o universo harmônico ao qual pertenço, o que não é tão fácil de se achar - e quando se acha, a pessoa está quase sempre atolada de trabalho, justamente por ser tão rara. O programa Finale, que temos aqui em casa, pra mim é o fundo do poço, é o fim do caminho. E a verdade é que abandonei cedo demais meus estudos de música - no início levados tão a sério, já que eu tinha, aos 20 anos, pretensões a me tornar uma arranjadora de verdade, escrever para orquestra, essas coisas. E vejo aqui que a palavra que acabo de digitar, "arranjadora", foi marcada como errada pelo corretor automático. Sintomático isso, não?

Prosseguindo: aos 22 anos, casei e engravidei pela primeira vez na vida, e isso tirou de mim a atenção necessária para que eu continuasse meus estudos em música. Interrompi a carreira, que só fui retomar em 1975, pela mão de Vinicius de Moraes. Mais tarde fui em frente, mas nunca mais com a disponibilidade de antes. E hoje o computador é o diferencial. Nem tempo eu teria para me dedicar a uma tarefa de tamanho vulto.

Antes de morrer prematuramente, meu amigo Almir Chediak chegara a mencionar uma vontade de fazer um songbook meu, nos moldes daqueles que produzira lindamente e que hoje são raridades. Não houve tempo. Mas, aos pouquinhos, vou juntando partituras feitas para os novos CDs, como as canções do 'Tudo', que já foram todas digitalizadas pela querida e talentosa Antonia Adnet. Somadas a outras mais antigas que tenho, ainda escritas à mão, e necessitando ser transpostas para as novas mídias, isso daria um songbook dos mais alentados. Mas muita coisa ainda teria de ser feita, são cerca de 500 canções, e a escolha de Sofia seria inevitável.

Enfim, como nada é impossível na vida, quem sabe num futuro próximo uma surpresa boa acontece? Vamos ver.