sábado, novembro 28, 2009

amor (parte 2)

Fiquei comovida com o emocionado comentário da Xica (leitora americana que está escrevendo direitinho em português) sobre meu post anterior. Embora eu estivesse falando sobre o amor de forma genérica, tentando ressaltar a importância do amor romântico na vida de qualquer um(a), o fato de aquele post ter sido feito a partir de uma reportagem sobre o amor romântico entre os gays acabou trazendo o assunto à tona. Pois, esperamos, este não será mais no futuro o amor que não ousa dizer o nome, o amor discreto pra uma só pessoa.

(Xica sonha com um amor no Brasil. Quem sabe? Boa sorte!)

A foto do Rio aparece aí porque nossa cidade foi considerada, em recente pesquisa internacional, como o melhor destino de viagem para gays no planeta. Atualmente temos um governador e um prefeito que, apesar de heteros na vida, são abertamente gay friendly; ou seja, há esforços em nível administrativo para que a cidade receba bem esta comunidade. Isto é um tremendo avanço, pois volta e meia vemos no Brasil casos de brucutus explícitos agredindo mulheres, gays e quem mais tenha qualquer postura fora dos chamados 'padrões de comportamento'.

Na música brasileira, minha área de atuação, sempre tivemos figuras gays de ambos os sexos. Desde os anos 1930, com o fabuloso e enrustidíssimo Assis Valente, até os gays mais visíveis de hoje. Como sempre, as mulheres foram mais corajosas (ou mais doidas) e se expuseram mais, a partir da minha geração. Tive e tenho muitas amigas, colegas de profissão, que botaram a cara de fora, virando até piada de TV - quem nunca viu as sátiras do pessoal do Casseta e Planeta, mostrando as 'cantoras de MPB' com visual sapatão? Quando fiz meu disco 'Feminina' em 1980, havia uma enxurrada dessas novas cantoras e compositoras aparecendo, 99% delas homo ou bissexuais. Meu disco tinha esse nome porque falava de questões femininas, era uma mulher falando de seu ponto de vista em todas as faixas. Mas o título provocou uma polemicazinha na época, exatamente por ser tão... 'hetero'. Parecia que eu estava querendo marcar minha diferença ao contrário, quando na verdade tudo isso era mais efeito do momento em que o disco foi lançado.

Já os homens na MPB, de maioria hetero, foram mais cautelosos (fora raras exceções, como meu querido Ney Matogrosso, que fez exatamente o que fariam as primeiras feministas: figurativamente, a queima da cueca). Nosso amado e genial Johnny Alf, hoje aos 80 anos, por exemplo: gay, negro, moderno demais e musicalmente sempre à frente de seu tempo, optou pelo ostracismo. No momento em que a bossa nova, que ela ajudara a inventar, estava explodindo no mundo, Johnny fez o caminho inverso e se internou na noite paulistana, de onde nunca mais sairia. Quando o convidei para participar comigo de uma série de shows nos Blue Notes japoneses, em 2002, fiquei surpresa em saber que era apenas a segunda vez na vida que ele ia lá. Um músico de sua estatura teria merecido várias turnês mundiais e todas as homenagens do mundo através dos tantos anos de carreira. Mas ele praticamente se escondeu, por modéstia natural - mas também talvez por temer as barras que viriam, caso tivesse aparecido mais.

Nossa única parceria, "Plexus' - música dele, letra minha - fala um pouco disso tudo, ou do que eu gostaria (na minha cabeça, pelo menos) que ele dissesse ao mundo:

                                           PLEXUS

                                                 

                                                             (Johnny Alf/ Joyce)


Olha

já fiquei livre de qualquer complexo

já vi no espelho o meu reflexo

mesmo que o discurso seja assim sem nexo

mesmo que eu te deixe com esse ar perplexo

não diga pro povo que eu não presto

fale do meu comportamento honesto

em nome da nossa amizade

mesmo que você fique pouco à-vontade

mesmo que eu não possa apreciar seu gesto

e o resto, você já sabe...


Diga que eu sou gauche na vida

mas sigo em frente, invento uma saída 

pra resolver qualquer parada

mesmo que entre nós não possa haver mais nada

mesmo que você não passe de um pretexto

a gente se vê pelas quebradas

qualquer esquina de qualquer contexto

e eu mesmo assim me manifesto

mesmo que o meu texto não seja verdade

mesmo que o meu samba seja assim modesto

e o resto, você bem sabe...


(você bem sabe, eu sou rapaz de bem...)



domingo, novembro 22, 2009

amor


Este casal da foto está junto há 32 anos. Aliás, 32 anos era justamente a idade que tínhamos quando fomos assim fotografados no estúdio, durante as gravações do 'Feminina', em 1980.

(O casalzinho está visivelmente flutuando em nuvens. Mergulhado um no outro. Quem nunca passou por isso, sorry. É bom demais, e não acontece a toda hora.)

Leio no jornal uma matéria sobre a novidade da busca do amor romântico pelos gays, uma comunidade que, diz a lenda, não estaria nem aí para isso. Mas hoje a maioria quer encontrar um parceiro estável, casar, até mesmo constituir família. Como diz um dos entrevistados, 'ninguém aguenta mais o sexo nômade'.

Na mesma matéria, leio uma declaração que me envergonha: uma escritora, feminista das antigas, diz que o amor romântico é um retrocesso, e que "com os gays vai acontecer o que aconteceu com as mulheres, que ficavam em casa de bobes no cabelo, gordas, enquanto os maridos se viravam com as secretárias". Perdão, cara senhora, mas de que homens e de que mulheres estamos falando? Hoje, em pleno século 21, ainda existem maridos que se viram com as secretárias e deixam as infelizes esposas em casa? Pode até haver, mas as mulheres (graças aos esforços das feministas da primeira geração, justiça seja feita) há muito deixaram de ser bobas. E os homens, por sua vez, aprenderam a ser mais sensíveis - os inteligentes, pelo menos, e são esses os melhores, os que nos interessam.

O amor romântico de retrocesso não tem nada, ao contrário, é um avanço que a civilização ocidental foi conquistando desde o final do século 19. Antes disso, os casamentos eram transações comerciais entre as famílias. O século 20 raiou com a possibilidade de cada um casar oficialmente com o objeto de sua paixão, e por escolha própria. Um avanço, repito, ainda que lá pelos anos 40/50 o moralismo vigente tenha tornado mais amarga a geração de nossos pais. Mas que nossa geração, a dos jovens dos anos 60/70, se encarregou de demolir.

Lindas e exemplares foram as declarações dos gays entrevistados, todos conscientes de que fundamental é mesmo o amor, all you need is love, qualquer maneira de amor vale a pena, etc, etc,  como sabiamente proclamam as canções. Vejam o que eles dizem:

"Essas nomenclaturas (gays, lésbicas, heteros) não têm mais sentido. Todos somos 'bicho-gente', e sendo assim, podemos viver um amor romântico. Seja com quem for, da maneira que for, desde que seja amor."

"O amor jamais será fora de moda ou retrô. Ele é o ar que me alimenta."

"É importante para todo ser humano ter essa experiência, pelo menos uma vez na vida."

Na minha modesta opinião feminina, nós mulheres não precisamos mais querer ser iguais aos homens de antigamente no quesito 'relacionamentos', com seus erros e inseguranças, trocando de parceiro a toda hora e separando o amor de casa do amor da rua. O tempo de queimar os sutiãs já passou, e hoje queremos ser - apenas - tudo: criar nossos filhos e filhas (em parceria, de preferencia), ser profissionais competentes (aí sim, iguais), amar apaixonadamente (nem que seja só uma vez). 

Como, acho eu, pessoas de todos os sexos querem também.

O mundo já anda complicado demais, e o amor a dois pode ser um grande alívio nesta vida. Portanto, jogue suas mãos para o céu, e agradeça se acaso tiver um.

PS- e não é que ligo a TV e vejo Ellen de Generes e esposa mostrando o video do casamento delas no programa da Oprah? As duas de branco e tudo. Na California já é possível ser gay e botar no papel o grande amor. 


terça-feira, novembro 17, 2009

na casa do Villa

Parece um Groucho Marx sem o bigode, mas é Heitor Villa-Lobos, irreverente como todo carioca - nosso pai/avô , morto há 50 anos, em 1959 - mesmo ano em que João Gilberto lançava seu primeiro disco, 'Chega de Saudade'. Rei morto, rei posto. Isso não é mera coincidência.

Na foto, nosso Villa demonstra o método chamado 'manossolfa', que nós, crianças dos anos 50, ainda aprendemos nas aulas de canto orfeônico. Cada sinal desses representava uma nota musical. Era uma forma de ensinar solfejo. No Colégio São Paulo, em Ipanema, onde estudei, um padre nos ensinava este método, largamente difundido na década anterior. Uma vez, numa entrevista para uma hoje falecida revista dirigida por Ziraldo, perguntei a Dori Caymmi (também irreverente como todo carioca, etc, etc...) se ele não achava que toda nossa geração de músicos existia graças ao Villa. E ele me respondeu, bem ao seu jeito: "esse negócio de dedo não é comigo". Mas a verdade é que aprendemos com o Villa, sim, e isso não dá para negar.

É famosa a história que o Tom contava sobre sua primeira visita à casa de seu ídolo, mas aqui a repito para os mais novos. Villa morava no centro do Rio, na rua Araújo Porto Alegre, local barulhento onde passavam bondes, ônibus, automóveis, muita gente na rua. E dentro de casa, o som ligado na novela da Rádio Nacional. Tudo ao mesmo tempo acontecendo, e ele imperturbável, sentado no chão, escrevendo suas partituras. Tom, impressionado, perguntara: "Maestro, como o senhor consegue?" - ao que Villa teria respondido: "meu filho, o ouvido de dentro não tem nada a ver com o ouvido de fora".

Num dia especialmente tumultuado aqui em casa, fiz esta música para os dois e também para o Vinicius - todos mestres em usar o ouvido de dentro como maior referencia. Ela está no meu CD 'Gafieira Moderna', de 2001:

                                      NA CASA DO VILLA

Na casa do Villa era uma zona 
Diz a lenda, com razão
Com rádio, com novela e com vitrola 
Atrapalhando a criação
Nem por isso o digno maestro alguma vez se perturbou
O ouvido de dentro é o que importa
Isso foi ele que ensinou

Na casa do Vina era uma festa
Como na casa do Tom
Com música, parceiros, namoradas
Desde a Gávea até o Leblon
Nem por isso o mestre ou o poeta desistiam das canções
O ouvido de dentro é o que importa
Nisso é que eles eram bons

Hoje em minha casa tem criança
Cachorro e televisão
Tem gente aqui chegando de viagem
Também tem gente que não
Nem por isso a música me larga 
Triste, sem inspiração
O ouvido de dentro é o que importa
Então eu fiz esta canção


quarta-feira, novembro 11, 2009

apagões


E desfez-se a luz! bem quando a gente acabava de assistir pela enésima vez a 'High Society' (com Frank Sinatra, Grace Kelly, Bing Crosby, Louis Armstrong e a deslumbrante música de Cole Porter) - já estávamos nos extras, com a coadjuvante Celeste Holm contando como fora o ambiente no set de filmagem, com Grace se preparando para o casamento com o príncipe Rainier de Monaco - e nossa rua ficou às escuras. Não era só nossa rua, era o bairro, e depois ficamos sabendo que não era só o bairro, era a cidade toda, era o estado, eram 10 estados, era até o valoroso Paraguai. Era um apagão daqueles que o vosso atual presidente utilizava como assunto de campanha política nos idos de 1999. Ei-lo de volta (o apagão, não o vosso presidente), lampeiro e faceiro, dez anos depois. Somos um país de incompetentes. Dá uma chuva forte e tudo para, independente de qualquer governo.

Os apagões da minha infancia (quando assisti 11 vezes a "High Society" no cinema, pois home video ainda não havia) eram diários, justiça seja feita. Havia racionamento pontual de luz, geralmente lá pelas sete da noite, e quem chegasse cansado do trabalho, como minha mãe, tinha de subir, no caso dela, seis andares de escada - e no escuro. Também faltava água, por supuesto. Seis andares de escada carregando baldes. Não se estava subindo o morro, era um prédiozinho de classe média-bem-média no Posto Seis, Copacabana. Era o "Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz" das marchinhas. A vida era essa e não se imaginava que fosse diferente. 

Aprendi desde pequena a tomar um banho completo com a água de um (um!) balde, na quantidade exata para até lavar a cabeça. O futuro já tinha começado, antes de Hugo Chávez e do aquecimento global. Meus netos, mal-acostumados com banhos de vinte minutos ou mais, terão dificuldades em lidar com isso um dia? Possivelmente. Eu, se cá ainda estiver, estarei preparada para ensinar a eles as técnicas que aprendi com minha mãe. Até porque vinte minutos com a água correndo é desperdício demais, e isso eu já estou avisando desde agora.

(Em 1977 eu estava morando em Nova York quando houve o famoso black-out na cidade, no chamado "Summer of Sam". Não vimos nada: eu e Tutty estávamos recém-juntos, e portanto ocupados demais em descobrir os mínimos detalhes tão pequenos de nós dois. Sequer saímos de casa para ver o que estava acontecendo, ao contrário - foi uma boa desculpa para ficarmos ainda mais enfurnados do que já estávamos. Não sei se houve outro apagão americano daquela magnitude. Perdemos a chance de testemunhar um fato histórico. Talvez porque pra nós, jovens brasileirinhos do Terceiro Mundo, um evento desses não fosse nada de incomum.)

Agora estou sem telefone em casa, e avisada de que devo economizar água, já que o apagão atingiu os reservatórios do Rio. Pelo menos posso usar o computador de novo. A garotada mal-acostumada do século 21 é que vai estranhar a situação. Mas se não houver apagão mental, tudo se ajeita.


domingo, novembro 08, 2009

saias, pernas e afins

Não era minha intenção, mas não posso deixar de comentar o impressionante desfecho do caso da moça de São Bernardo do Campo, que foi às aulas na Uni(tali)ban de mini-vestido rosa shocking, e por isso sofreu constrangimentos, ameaças de estupro coletivo, xingamentos diversos e por pouco não foi devidamente apedrejada pelos gentis colegas, cerca de 700 rapazes nervosos com a presença de um par de pernas de fora no sacrossanto recinto da universidade. Foi salva pela PM, que providencialmente se apresentou para resgatá-la. 

Como carioca da gema, e ainda por cima da geração anos 60/70, não consigo entender qual a dificuldade destes jovens com a visão de partes de um corpo feminino. Certamente a mesma lá do Afeganistão e de outras localidades igualmente pudicas. Considero, com toda certeza, que a estética da moda feminina atual é de extremo mau gosto. As meninas brasileiras e americanas do norte das novas gerações têm optado por modelitos mais para o vulgar, na minha modesta opinião - nos Estados Unidos, as estrelas pop usam cada um de arrepiar, e por aqui o que as meninas têm como modelo são as BBBs da vida. Isso não me impede de considerar que cada pessoa veste o que lhe der na telha, e ninguém tem nada com isso.

Hoje leio nos jornais que a universidade finalmente tomou uma providencia: expulsou a moça, por "falta de decoro". Os 700 marmanjos que pretendiam agredí-la foram poupados. Sugiro às alunas desta nobre instituição que preparem as burcas para o próximo ano letivo.

PS- lendo alguns comentários de leitores, lembrei da primeira visita do nosso genro sueco ao Rio, em 2004. Na Europa o topless nas praias - e às vezes mesmo nos parques, no alto verão (caso dos países escandinavos) - é totalmente normal. Nosso visitante, garoto de Estocolmo, não entendeu nada quando percebeu que por aqui todo o mundo fica nu no Carnaval, ao vivo e a cores na TV - mas na praia, qualquer tímida tentativa de topless é muito mal recebida. Pois é, vai entender...



segunda-feira, novembro 02, 2009

shirley horn


Existem os writer's writers, escritores que os outros escritores admiram, como Gay Talese (para o jornalismo) e Borges (para a ficção). Ou actor's actors, como recentemente são Meryl Streep, Fernanda Montenegro, Philip Seymour Hoffman. Existem os musician's musicians (sou casada com um), aqueles que são respeitados por seus pares e colegas de instrumento. Em matéria de cantoras, como singer's singer, acho que Shirley Horn é talvez a maior unanimidade que conheço. Meu CD Slow Music é dedicado a ela (e a Bill Evans e João Gilberto), mas não foi surpresa para mim quando vi que a mega-ultra-superstar Barbra Streisand tinha feito o mesmo em seu novo disco. E fez mais: regravou várias canções que nossa musa Shirley já eternizara anteriormente, e com a suprema ousadia de usar o mesmo arranjador, Johnny Mandel. Quem pode, pode, sem dúvida.

Divina (tão divina quanto Elizeth foi pra nós aqui no Brasil), La Horn não tem as firulas vocais de Ella Fitzgerald (que também adoro, quando está em seus momentos cancionistas; nos momentos de scat, acho um pouco excessiva), nem a extensão vocal de Sarah Vaughan (que às vezes é um fim em si mesma), nem a frieza de Carmen McRae ou as loucuras de Betty Carter - SH é emoção pura, conjugada a técnica perfeita. Ela é, aliás, uma falsa perfeita, como Elis também foi. E ainda toca aquele piano todo, e harmoniza as canções com propriedade absoluta. É senhora do tempo, dos silêncios, das pausas longuíssimas, mas tem um suingue infernal quando quer. A escolha de repertório é quase impecável. SH é tudo de bom.

(Estou falando dela no tempo presente, porque grandes músicos não morrem.)

No comecinho dos anos 1990, fomos colegas de gravadora, na americana Verve. Muitos anos depois, fui vê-la ao vivo pela primeira vez, quando veio ao Rio. Não era um bom momento. Ela já estava bastante doentinha, tivera um pé amputado, por complicações de diabetes, e não tocava mais piano, pois seu delicado trabalho de dinâmica dos pedais estava prejudicado com isso. Imagino sua aflição, ela que sempre fizera absoluta questão de ser a pianista de si mesma e sempre recusara as propostas para ser uma stand-up singer, ou seja, a cantora que se apresenta de pé no centro do palco, microfone na mão. O piano e ela eram uma unidade, assim como voz e violão têm sido para alguns de nós aqui na nossa MPB, a partir de João Gilberto. Sei perfeitamente, portanto, como ela se sentia quando disse que só gostava de cantar ouvindo os acordes que tinha imaginado, e por isso não podia dispensar o piano. Eu sinto exatamente a mesma coisa com relação ao meu violão.

Enfim, voltando aos anos 2000 e pouco, quando fui vê-la: era o famigerado Free Jazz Festival (que nossa filha mais nova, de humor especialmente ácido, tinha apelidado de "Jazz-Free Festival"). Os espetáculos estavam distribuídos por diversas tendas, uma para cada gênero, e nossa musa se apresentava no chamado 'club'. Só que bem ao lado estava a tenda do hip-hop, e o tratamento acústico não era dos melhores, para dizer o mínimo. O concerto de Shirley, com suas pausas e silêncios, seria enormemente prejudicado pela barulheira ao lado, fazendo com que ela parasse o show na metade, por não conseguir seguir em frente com sua música. 

Foi um dos momentos em que tive mais vergonha de nossa brasileiríssima falta de cuidado, embora esse tipo de coisa até possa acontecer em outros locais também. Mas a diva estava lá, em cadeira de rodas, pronta para oferecer o seu melhor, embora apenas com a voz - o piano estava ocupado por outro músico, já que ela não podia mais tocar. Mas isso já era muito. Não custava nada o pessoal da organização ter programado horários diferentes para os diferentes espetáculos. Teria sido mais respeitoso.

Fui falar com ela no camarim, depois do show. Ela se lembrava de mim e foi gentil, dentro do possível naquelas circunstancias. Sua produtora, Sheila Mathis, uma boa amiga dos velhos tempos da Verve, me ajudou a sair dali antes que sua patroa desse uma solene bronca nos organizadores do festival. Seria a última chance para nós, seus fãs, de tê-la ao vivo, pois a Divina iria falecer logo em seguida.

Tudo isso me veio à lembrança enquanto ouvia Barbra cantar 'Here's To Life', a canção-assinatura de Shirley, com um arranjo do Johnny, quase igual-que-nem o original. Corajosa, essa dona Streisand. 

PS- Perdão, tomei como certo que todo o mundo que lê meu blog tenha lido meu livro também. Nele há um capítulo chamado 'Perfeição' onde eu, meio de brincadeira, divido os criadores em perfeitos e imperfeitos. Cito a mim mesma aqui: "o imperfeito é possuído pela paixão, o perfeito a possui". Então, por exemplo, Pelé é perfeito e Garrincha imperfeito, Renoir é perfeito e Van Gogh imperfeito, e por aí vai. Todos geniais, de qualquer modo. Os falsos perfeitos parecem perfeitos, mas não são: já chegaram a tal domínio da sua arte que podem deixar a emoção fluir sem risco. É o caso de Shirley... e de Elis.