
Cypho “Hotstixs” Mabuse é um músico e produtor sul-africano, certamente um dos mais bem-sucedidos do seu país. Sybongile Khumalo, cantora, é uma das grandes divas da África do Sul, onde grava nos idiomas inglês e zulu, com ótimas vendagens e enorme prestígio.
Os dois têm muito em comum, a começar pela origem: cresceram juntos no mesmo gueto, em Soweto, distrito de Johannesburgo, nos anos duríssimos do apartheid, e foram abrindo caminho na carreira musical com coragem e competência. Outro dado em comum entre eles é a paixão pela música brasileira _ para minha alegria, os dois incluíram, já há bastante tempo, uma canção minha e de meu parceiro Mauricio Maestro em seus repertórios.
Neste exato momento (fazendo de conta que ainda estamos no ano 2000), tomamos um chá na casa de Mabuse, nosso anfitrião em Johannesburgo. “A primeira coisa que o negro faz aqui quando se dá bem na vida é sair do gueto”, nos conta ele. “Já eu faço questão de continuar morando no mesmo lugar, e ser uma referencia para essa garotada que está aí”. De fato, a casa de nosso anfitrião é uma referencia em todos os sentidos, especialmente no bom-gosto e nas deslumbrantes peças de arte vindas de todo o continente.
Mas o que mais acende a nossa conversa é a pergunta que acabamos de ouvir no conservatório de Soweto, onde fizemos um workshop sobre música brasileira, e que Mabuse nos repete, insistente: “como é que vocês no Brasil conseguiram preservar a identidade cultural na música de maneira tão forte?” Ele não pergunta isso à-toa: acaba de ser realizada aqui a Semana de Música Sul-Africana, com enormes dificuldades, inclusive de público. A cultura local sofre esmagadora influência do pop norte-americano, e sua única manifestação bem recebida tem sido uma espécie de rap em zulu.
Mabuse prossegue, dizendo: “Tudo o de que precisávamos era ter tido um Jobim na África. Imagino que Antonio Carlos Jobim seja o mais respeitado de todos os brasileiros, já que a música dele é a maior referencia cultural brasileira no mundo”. Ah, meu amigo, agora é que você se engana. Preciso lhe contar duas ou três verdades sobre o meu querido país.
Pra começo de conversa, o que se escuta nas rádios brasileiras já está dominado pelo pior faz tempo. Não quero desfazer sua ilusão, mas pelo andar da carruagem, o povo brasileiro daqui a 10 anos não vai mais sequer saber o que foi a música brasileira do século XX. E não, os intelectuais do Brasil não estão unidos em defesa da identidade nacional, muito pelo contrário. Imagine você que até hoje há quem acuse o nosso bom Tom pelo fato de ter nascido branco, numa família de classe média. Pois é. O nosso apartheid é assim meio engraçado, o pessoal às vezes atira pelos motivos certos na direção errada.
Música não tem cheiro nem paladar nem cor, a não ser se pensarmos pelos cânones impressionistas de um Debussy, responde meu amigo Mabuse. E eu completo: no Brasil, de onde menos se espera, sai um milagre. Coisa divina, sabe como é? O que poderia explicar a existência de músicos como Hermeto Pascoal, albino de Arapiraca, em Alagoas, ou Moacir Santos, negro nascido em Flores, Pernambuco, ambos vindos de ambiente rural, famílias de agricultores paupérrimos, sem estudo formal de nenhuma espécie, e que produzem música sofisticadíssima, de deixar o mundo boquiaberto (e que o povo, o famoso “polvo” brasileiro, desconhece)? E você já ouviu falar em Noel Rosa, branquinho de classe média, estudante de medicina, que foi talvez o mais popular dos sambistas brasileiros na primeira metade do século passado? Pois é.
A música feita no Brasil _ “flor amorosa de três raças tristes”, segundo Olavo Bilac _ já teve vários nomes para tentar definí-la, e MPB certamente foi o menos feliz de todos. Mas na grande árvore genealógica desta que é, de longe, a mais bem-sucedida manifestação cultural do nosso país, o samba está para a bossa-nova assim como o blues está para o jazz, como o pai para o filho. Um é raiz, o outro é fruto. A bossa-nova é de fato o equivalente brasileiro do jazz: o clássico moderno de origem popular, mundialmente amado e respeitado, que sobrevive (e sobreviverá) aos tempos que vivemos. E que deveria, sim, ser reconhecida como patrimonio imaterial da Humanidade, tendo Tom Jobim como patrono. O resto é discussão entre primos.
PS- Este texto meu foi publicado no Globo do último domingo, 31/12/2006, com o título "As Flores do Gueto". Foi escrito num momento de profunda irritação, causada pela leitura do artigo de Nei Lopes, "Samba, MPB e Racismo", que malandramente compara a bossa-nova ao pop-rock dos anos 80, apenas por ter nascido em ambiente classe média e supostamente "branco". Não precisamos de mais um apartheid na música brasileira. Se hoje ela é branca na poesia, ela é negra demais no coração.