concursos

Detesto. Nunca me senti bem em nenhum tipo de competição, fugia delas no colégio, mas afinal fui parar num ramo altamente competitivo, que é o da música. Nunca dei muita sorte em concursos, é verdade. No início da minha carreira (comecei na época dos festivais) éramos todos um bando de amigos que se encontravam quase que diariamente, um mostrando as músicas novas pro outro, testando fórmulas e limites, desafiando o mundo. Éramos filhotes da bossa-nova, netos do samba dos anos 30, estávamos reinventando a roda e sabíamos disso. Nesse ponto, era bem bacana.
(na foto acima, de 1969, estou cantando com Edu Lobo, contumaz vencedor de festivais. Aqui estamos em Lisboa, no Teatro Villaret, num show que teve os Mutantes fazendo a primeira parte. Edu era o grande nome da noite, e me convidou para dividir o show com ele. Foi a primeiríssima vez que me apresentei fora do Brasil)
Mas o que era saudável competição, a partir do aparecimento dos festivais _ os premios em dinheiro, a popularidade, a exposição _ tudo isso junto fez com que mudassem os parametros, e de repente aquele seu amigo já não era tão seu amigo assim. As invejas pipocavam, o clima ficava pesado. Não era sempre que isso acontecia, é bem verdade. Mas a partir do surgimento da Tropicália, o racha foi inevitável.
(sim, estou falando dos pré-históricos anos 60...)
Como eu disse, participar de concursos nunca foi o meu forte. Cantar em estádios como o Maracanãzinho, então, era puro pesadelo. O som pavoroso, a turba furiosa, pronta para vaiar ou aplaudir sem que a gente entendesse o critério... Algumas pessoas se deram bem ali, conseguiram segurar a onda e fazer uma boa apresentação, apesar de tudo. Eu nunca fui uma delas. Minhas performances no ginásio Gilberto Cardoso estão entre as piores da minha vida.
A primeira a gente não esquece. Era para ser uma espécie de aquecimento para quando eu fosse cantar ("defender", como se dizia na época) minha própria música. Fui escalada por meu amigo Jards Macalé para apresentar, junto com os meninos do Momentoquatro, a música dele, "Sem Despedida", logo na primeira noite. Em retribuição, ele me acompanharia ao violão quando eu fosse cantar minha música, "Me Disseram", na eliminatória seguinte.
Macau era um aplicado aluno de orquestração do maestro Guerra Peixe, e o escolheu como arranjador para sua canção. Sem muita noção de quem deveria chamar, totalmente desinformada, fui atrás do meu amigo, e escolhi o mesmo arranjador que ele. Foi nosso primeiro erro. Guerra era de fato um grande arranjador _ mas não para músicas no estilo das nossas. No primeiro ensaio com a orquestra, sentimos logo que os arranjos não eram apropriados. Eram grandiloquentes demais, grandiosos demais, quase sinfonicos, quando as músicas pediam outro clima _ a de Macau, uma modinha; a minha, um samba-canção de inspiração bossanovista. Erro nº 1: nunca escolha um arranjador com quem você não se identifique.
Constatado o desastre iminente, eu e Jards fomos à casa do maestro Guerra, tentar expor nossas idéias para simplificar o arranjo. Mas o maestro era uma fera, e nos pôs para fora aos gritos. Ficamos passados. Tentei com a organização do festival trocar de arranjador, mesmo em cima da hora, e pedi a Oscar Castro Neves (muito mais apropriado para a música em questão) que me quebrasse esse galho, o que ele, em nome da ética profissional, não aceitou. E assim fomos para o sacrifício, sabendo que estaríamos de antemão desclassificados. Erro nº 2: numa hora dessas, demita o arranjador e faça de voz e violão.
Para piorar, "Sem Despedida" foi preparada um tom acima do que seria o ideal para minha voz, para melhor se adequar ao arranjo vocal do Momentoquatro. Eu cantava a música inteira uma vez, na segunda eles entravam, e ao final, depois de uma pausa dramática, eu cantava sozinha a última frase, uma oitava acima, ai de mim: "por toda vida é só teu meu coração". No ensaio, em casa, dava tudo certo. Já no festival... Erro nº 3: jamais cante num tom que não é o seu, principalmente num ginásio com 30 mil pessoas. Ao vivo, minha voz falhou no momento crucial.
No dia seguinte, impávida, entrei para cantar minha música, desta vez me sentindo mais segura, apesar do arranjo impróprio. Pelo menos o tom era o meu mesmo. O público me recebeu melhor do que eu esperava, dadas as circunstancias da véspera, disposto a me dar mais uma chance _ o que só durou até que cantei a primeira frase: "já me disseram/ que meu homem não me ama..." Foi o suficiente. O Maracanãzinho explodiu em vaias na mesma hora, e cheguei ao fim da canção de cabeça erguida, mas piscando para não chorar. Entendi ali naquele minuto por que Bethania, maior incentivadora da minha inscrição no festival, não aceitara defender minha música quando eu a convidei. Ela de boba não tinha nada, e já estava prevendo o que viria.
Nas semanas que se seguiram, Jezebel era pouco para o que alguns jornais diziam da minha modesta pessoa. Demorou um tempo até que as pessoas se acostumassem com a idéia de uma mulher cantando coisas de mulher. Mas isso é uma outra história.
PS- tinha eu dezenove anos de idade...